"Mvsa mihi cavsas memora"

sábado, 2 de julho de 2011

Poesia: Caio Valério Catulo

Deixa de querer prestar um favor a alguém,
Deixa de crer que alguém possa ser grato.
Só há ingratidão. De nada adianta ter sido prestativo;
Isto ao contrário causa mais desgosto e
Mais contrariedades como causa a mim,
a quem ninguém nem mais insuportavemente
nem mais penosamente ameaça do que aquele
que até há pouco me teve como único o
exclusivo amigo.

Poesia: Versos Íntimos - (Augusto dos Anjos)

Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a ingratidão- esta pantera
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Morra, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro.
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija! Quimera: fantasia, sonho, ilusão.

(Eu e outros poemas. 30. Ed. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1965. p 146)



Análise: por Damiana Barci e Maria Letícia Felintro.
Nos dois poemas o eu lírico fala sobre a ingratidão, o poema “versos íntimos” de Augusto dos Anjos, é mais profundo, há até um rebuscamento muito considerável na escolha dos léxicos, dos seus sinônimos e antônimos, há uma novidade no vocabulário, o poema também faz uso de termo no tom coloquial e cotidiano da linguagem, como se observa na 3ª estrofe: “Toma um fósforo. Acende teu cigarro!” existe esse cuidado para impressionar o interlocutor, que é uma das características que também contribui para a questão da intensidade. Segundo Paul Veyne (1985, p. 268), “emoção intensa, associada a uma intensa ostentação de imagens: eis o que é a poesia destes dois últimos séculos...” é o que está claro na 3ª estrofe do poema “versos íntimos” em que o eu lírico diz: “Toma um fósforo. Acende teu cigarro! \ O beijo, amigo, é a véspera do escarro. \ A mão que afaga é a mesma que apedreja”. Da também a ideia de modernidade líquida, do aqui e agora, do descartável. Segundo William Cowper que diz “não são mais palavras que se escuta, mas emoções que se sente”. “grifo nosso”. É o que confirmamos na segunda estrofe do poema “versos íntimos” “Acostuma-te à lama que te espera!\ O homem, que, nesta terra miserável, \ Mora, entre feras, sente inevitável \ Necessidade de também ser fera”. Em que o significado que o eu lírico está querendo passar toca no profundo do ser. Na realidade de hoje, da correria em que vivemos para acompanhar os avanços da tecnologia, da globalização, onde o ter, o possuir é mais importante do que o ser, onde não importa o que vamos ter que passar, temos que acompanhar a modernidade, o viver realmente, plenamente, é ignorado. E é até por isso mesmo que as poesias modernas tem que tocar mais, tem ser mais profundas para ganhar algum mérito de pelo menos serem apreciadas, se não, passam despercebidas, hoje em dia tudo é muito banalizado, essa é a realidade atual. Os poemas modernos têm que aproximar-se mais do nosso cotidiano para nos dar a curiosidade, o interesse e a satisfação de admirá-los, não porque seja mais fácil para entendê-los, mas por serem mais originais.
Nossa estética tão particular estragou-nos o paladar para quase toda antiga poesia; é preciso o poema ossudo e lacônico de Dante para nos excitar um pouco (supondo que disponhamos de três bons meses para lê-lo)”. (Veyne, 1985, p.269).
No poema de Catulo a questão da ingratidão entre amigos é tratada de forma menos profunda, o tratamento do tema é feito de uma forma mais superficial, mais objetiva e não tão profunda, até os vocábulos escolhidos para constituírem o poema são mais simples, são mais corriqueiros, A poesia de Catulo não toca tão profundamente como a poesia de Augusto dos Anjos.


                                            (Damiana Barci e Maria Letícia Felintro.)

Um comentário:

  1. As poesias foram bem escolhidas; elas, de fato, são capazes de ilustrar o requerido posicionamento distinto dos eu-poemáticos de cada contexto em relação ao mundo que os circunda, na medida em que se expressam peculiarmente acerca de uma mesma problemática.

    Não obstante, devo dizer que, na minha opinião, a questão central da seleção lexical não é que os vocábulos da 1a poesia sejam corriqueiros e os da 2a rebuscados. Acredito que o efeito surtido no contraste de cada escolha se deva ao caráter mais neutro em Catulo versus a apoeticidade vocabular em Augusto dos Anjos. Destarte, nós, indivíduos modernos permeados até o âmago pela dita "estética da intensidade", ao vermos um poema harmônico, qual o de Catulo, possuir como tema um sentimento forte, julgamo-lo artificial. Por outro lado, o romântico do último texto, para expressar a fortaleza do que sente, utiliza-se de expressões que visam justamente a quebrantar essa harmonia. E, ainda, fim de salientar isso, constrói imagens violentas que, além de, por si, chamarem atenção por pertencerem a uma poesia, também são feitas por meio de contrastes internos. Isso se exemplifica em expressões como "formidável enterro de sua última quimera", "acostuma-te à lama", "mão vil que te afaga", "o beijo é a véspera do escarro", "somente a ingratidão foi tua companheira inseparável", etc.

    Camilla Barros

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