"Mvsa mihi cavsas memora"

quinta-feira, 30 de junho de 2011



CATVLLI CARMINA TRIA  


em tradução de Érico Nogueira


Tuas delícias, Flávio, ao teu Catulo
(exceto as toscas e as deselegantes)
tu querias contar – calar por quê?
Mas sei que amas uma puta infecta
que, tão pudico, teimas em esconder.
Não sei por que o quieto quarto grita
“Flávio não passa as noites num velório”,
ardendo em flores e óleos do oriente:
um travesseiro aqui, ali e além
um som de atrito, e eis um leito trêmulo,
a ranger, que passeia pelo quarto.
Não adianta negar, fazer silêncio;
por quê? – pois não reclamarias tanto
de dor nas costas, se não fornicasses.
Diz-me o que tens de bom, e o que não presta:
que eu quero a ti, e a teus amores todos,
levar ao céu na graça do meu verso.
Original em Latim
Flavi, delicias tuas Catullo,
ni sint illepidae atque inelegantes,
velles dicere nec tacere posses.
Verum nescio quid febriculosi
scorti diligis: hoc pudet fateri.
Nam te non viduas iacere noctes
nequiquam tacitum cubile clamat
sertis ac Syrio fragrans olivo,
pulvinusque peraeque et hic et ille
attritus, tremulique quassa lecti
argutatio inambulatioque.
Nam ibi stat. Pudet nihil tacere.
Cur? Non tam latera ecfututa pandas,
ni tu quid facias ineptiarum.
Quare, quidquid habes boni malique,
dic nobis. Volo te ac tuos amores
ad caelum lepido vocare versu.


Nos textos de Catulo e de Drumond observa-se a existência de um enorme desejo de possuir a denominada “puta”.
Independente da forma como cada autor expressa tal desejo, acabam partindo para um mesmo objetivo. Em Catulo, a ânsia é de ter uma puta amada, escondê-la. Já em Drumond o desejo é mais carnal, onde o desejo de estar com a puta é dominante prazeroso.
Veyne afirma que a verdade da arte moderna é: "ver mais amplamente, fazer mais fortemente, ir mais longe na beleza e na realidade". Pois de fato percebemos que há um certo contraste com a poesia clássica neste sentido, pois, Catulo utiliza um tratamento mais delicado até mesmo na poesia erótica, diferentemente da moderna que faz questão de explicitar o prazer de modo real, mais forte, dominante e poderoso.
O poeta clássico imprime pouca intensidade nos versos, o que inclusive pode ser visto claramente no poema de Catulo, citando a puta apenas uma vez, apesar de que mesmo a intensidade não representar à verdade do texto, ainda assim garante autenticidade, porque ao intensificar, produz um efeito de sinceridade.
Os poetas da antiguidade eram mais focados na estética, na técnica, esse era o conceito na época, por isso não podemos afirmar que os mesmos não eram originais, assim, o que pensamos ser original já estava presente, porém não nomeado.

                                                     (Jefferson Fernandes e Francisco)
SIMPLICIDADE E EFEMERIDADE NA POESIA LÍRICA

A poesia lírica surgida em Roma nas imediações do período augustano é certamente um estilo decisivo para toda a poesia através da história. Principalmente através da consagração dos temas tratados, a lírica do período cristaliza no imaginário popular imagens de amor, simplicidade, desprendimento, que até hoje influenciam músicos e poetas quando tratam dos mesmos temas. Através da repetição, a lírica romana, fortemente inspirada em poetas gregos (líricos ou não, como é o caso de Homero) cria lugares comuns, “topoi”, a cuja familiaridade ainda hoje muitos escritores lançam mão para elucidar o estado apaixonado e envolvente a que, quando em vez, a alma humana ainda se entrega.
Muitas são as imagens cristalizadas pelo estilo: imagens de mulher – amante, musa, cuja beleza flerta com o divino –; o “locus amenus”, a casa no campo, a casinha de palha,a que árcades e hippies tentaram em vão regressar. Neste trabalho, serão abordadas duas tópicas famosas, a efemeridade e a simplicidade, esta frequentemente traduzida pelo desapego ou pela aversão à riqueza, ao luxo e, certas vezes, à fama. A título de comparação, e também para demonstrar quão vívidos ainda estão esses “lugares comuns” no imaginário contemporâneo, foi escolhidas
a letra de música “The Wanderer”, do grupo Jil is lucky, aqui confrontada com excertos da obra de Tibulo.


THE WANDERER

There are flowers in my room,
and they don't need a job
They just need time
to grow and die
And the lovers in their cloud
don't give a shit about money
They're here to try
to stay side by side
But it's so hard

'Cause the morning always comes to kill the dream
You had the night before”


O VAGABUNDO (Jil is Lucky)

Tem flores no meu quarto, e não precisam trabalhar
Só precisam de tempo p'ra crescer e murchar
E os amantes, em sua nuvem, não precisam de dinheiro
Eles estão aqui para tentar permanecer juntos,
mas é tão duro!

Porque a alvorada sempre chega e mata os sonhos
que você sonhou na noite anterior”

Na letra da música, encontramos algumas temáticas tipicamente horacianas. Segundo Zélia de Almeida Cardoso “Horácio apresenta (…) ideias sobre amor, a brevidade da vida, a necessidade de viver o momento presente, a procura do prazer” (NOVAK, Maria da Glória e NERI, Maria Luiza, org. Poesia Lírica Latina, Martins Fontes, São Paul. 1992. página XI). Através da símile entre as flores e os amantes, o autor estabelece a afetividade como um sentimento restrito à condição material, corpórea da vida. A metáfora da alvorada, por sua vez, exemplifica a afirmação de Francisco Achcar, ao dizer que “a lírica concentra-se no estreito limite do presente, na brevidade da canção” (ACHCAR, Francisco. Lírica e Lugar-Comum: alguns temas de Horácio e sua presença em português. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1994. página 59). Nesse sentido, o dia torna-se a unidade de tempo utilizada pelos poetas para mensurar a duração de um sentimento ou de uma relação: a brevidade de um dia é a unidade máxima. E, Catulo, a preocupação com o dia fica expressa em

Brilharam-te, realmente, belos dias de sol”(Catulo 8, 8)

A comparação de amantes a flores de curta duração sugere-nos ainda a exaltação da juventude como “estação” da vida quando o amor deve ser desfrutado. Encontramos a correlação da juventude e do amor carnal em Tibulo, em

logo, sub-reptícia, virá a idade inerte, e não ficará bem amar
ou dizer palavras ternas de cabeça branca”

e se confirma em

“ – laços que permaneçam para sempre, enquanto a lenta velhice
trouxer as rugas e desbotar os cabelos” (Tibulo, II, 19-20)


não se tratando, pois, de amor transcedental, pretensioso.
A metáfora das nuvens, por sua vez, reforça a ideia de que os amantes, “pairando” sobre a realidade sem tangencia-la, escapam de diversos perigos. A nuvem já era elemento comum na poesia épica, quando Vênus envolve Eneias em nuvens que o levam a sua futura amante Dido, e antes disso, em Homero, quando envolta em nuvens Helena vai ao encontro de Páris. Aqui, a metáfora dialoga com Tibulo, para quem os amantes estão liberados das necessidades orgânicas e materiais do corpo. Em um de seus poemas, Tibulo chega a dizer:

os ricos desprezarei e desprezarei a fome” (Tibulo, I, 78)

O amor é comumente a preocupação central destes poetas. Em Catulo, por exemplo, observa-se tratamentos estéticos diferentes para diferentes temas: o amor recebe métrica imprecisa, “a linguagem é simples, espontânea” (Lírica Latina, página X). Em “The Wanderer”, percebe-se também o descaso, ainda que proposital, com a linguagem, com o uso de gírias (“Don't give a shit about the money”) e de contrações (da palavra “because” para “'Cause”).
Tibulo é emblemático do painel bucólico, simples, do amor que é finalidade em si mesmo – e somente assim é puro. O sentimento está no centro, como que regente de uma vida que, repleta pelo sentimento correspondido, alimenta desprezo àquilo que exceda as necessidades básicas da sobrevivência.“Tibulo canta o amor puro e desinteressado, entendendo-se por pureza não o matrimônio, mas, sim, a sinceridade amorosa que faz uma pessoa inclinar-se por outra e deseja-la” (72, poesia lírica).
A lírica latina não se preocupa com a introdução de elementos inovadores. Pelo contrário, caracteriza-se em algum grau por sua rigidez, pelo compromisso temático e estético que, por assim dizer, punha rédeas nas palavras dos poetas. Sendo assim, o gênero é composto por fórmulas consagradas, figuras de linguagem que se repetem, metáforas que dialogam entre si, aludindo umas às outras. Nesse sentido, o próprio clichê, a despretensão de encontrar a “rima perfeita” ou uma metáfora por demais rebuscada, conduz a lírica latina aos “topoi”, aos lugares comuns, aos clichês. Essa familiaridade tem um efeito de simplicidade que condiz com a temática lírica.

                                                           (Carmen Lúcia de Carvalho)
8(Caio Valério Catulo)
Meu pobre Catulo, põe um termo neste delirar
E considera perdido o que vês que se perdeu.
Em tempos passados sóis luminosos brilharam
Quando tu, constantemente, corrias
Para onde te chamava a jovem por nós tão amada
Quanto nenhuma outra será jamais amada.
Nestes encontros então aconteciam aqueles
Inumeráveis momentos de prazer: o que tu querias
A jovem também não o deixava de querer.
Sóis luminosos realmente brilharam para ti.
Hoje, porém, ela já não te quer mais.
Também tu, incapaz de te conteres, não queiras mais,
Não persigas aquela que te foge, não vivas infeliz,
Mas conserva inflexível teu espírito, resiste.
Adeus, minha jovem amiga, Catulo já resiste,
Não mais irá te procurar, não mais te convidará
A um encontro, se não o desejares.
Mas tu chorarás quando não mais fores solicitada.
Ai de ti, infeliz. Que vida te está reservada?
Que homem irá ter contigo?
A quem parecerás bela? Agora a quem amarás?
A quem dirão que pertences? A quem beijarás?
De quem morderás os lábios?
Mas tu, Catulo, resiste.



Do amoroso esquecimento
(Mário Quintana)

Eu, agora - que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?


Na obra de Catulo, observa-se uma auto reflexão. O eu – lírico tenta se convencer de que não mais amará a mulher que o rejeitou, e a todo o momento relembra acontecimentos passados a fim de comprovar a sua resistência aos encantos da mulher amada. Na passagem abaixo, Catulo se mostra um tanto quanto recalcado em relação ao futuro da mulher que perdeu:

A quem dirão que pertences? A quem beijarás?
De quem morderás os lábios?
Mas tu, Catulo, resiste.”

Segundo Paul Vayne as poesias antigas não nos causam emoções, por não conterem ostentação de imagens. O contrário acontece na poesia moderna, pois os autores modernos se valem da estética da intensidade, que seria justamente a ostentação de imagens, e é através dela nos é transmitida a emoção, a sinceridade e a veracidade que um poema carrega. William Cowper resume: "não são mais palavras que se escuta, mas emoções que se sente"
Vayne também diz que os poetas contemporâneos renunciam à clareza, ou seja, não sem empenham em compor um poema de fácil compreensão, pois acreditam que ao escreverem algo de fácil entendimento estarão comprometendo a intensidade da obra.
Mario Quintana em seu poema declara o fim de um relacionamento, assim como Catulo. O diálogo é estabelecido em função da incerteza, ambos precisam esquecer um amor, mas entre os dois paira a vontade de permanecer amando. Tal semelhança é claramente percebida nos seguintes versos:
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?”

Nesta poesia, as características que Veyne dá a um poema moderno estão implícitas no silêncio do autor. A emoção aparentemente contida é justamente o que dá sinceridade às palavras de Quintana, que por sua vez, não se preocupa com a compreensão do leitor e sim com
a expressão do seu sentimento. O mesmo não ocorre no poema de Catulo, que retoma fatos com o fim de fazer o leitor entender como ele está sofrendo. Este sofrimento aparente nos proporciona uma compreensão mais clara do que se passa na poesia de Catulo.
Por fim, Paul Vayne nos leva a constatar com mais propriedade as diferenças estruturais em uma poesia antiga e em uma contemporânea, por mais que haja como ponto em comum a temática amorosa.

                                                                        (Nathália Carvalho)
Soneto de Fidelidade

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

No poema de Vinicius de Moraes ele se mostra fiel aos seus sentimentos e muito zeloso em relação ao amor que sente. O eu-lírico demonstra seu encanto por esse amor e deseja viver cada momento intensamente espalhando seu canto, riso ou pranto em função das emoções que esse amor lhe traz. Ele demonstra que independente de sua amada está feliz ou triste ele também estará. No fim do poema Vinicius de Moraes usa um paradoxo:

Mas que seja infinito enquanto dure.”

Significa que não importa se seu amor  durará dois dias, dois meses ou dois anos, o que prevalecerá será o desejo do eu-lírico de que seja vivido intensamente a tal ponto que pareça eterno.

     109
                            Minha vida!, me dizes que este nosso amor
                           será feliz aos dois, será eterno.
                          Deuses grandes, fazei que prometa a verdade,
                           que sincera e de coração o diga
                         e que nos seja dado, a vida inteira, sempre
                        este pacto viver de amor sagrado.
                                                                              (1-6, Catulo)

Catulo quer viver um amor eterno, ele pede aos deuses que possa viver esse amor, pede felicidade e que sua amada seja sincera em relação aos sentimentos. No final de seus versos pede que possa viver a vida inteira esse amor sagrado.
  Os dois poemas demonstram o desejo de viver um amor duradouro. No poema de Vinicius de Moraes ele pede que seja infinito enquanto dure, ele deixa claro que viverá cada momento intensamente.  Não importa quanto tempo dure será vivido cada momento como único.
Diferentemente de Catulo que deseja que seu amor não tenha fim, que dure pra vida inteira.
No versos de Catulo encontramos pouca intensidade nos sentimentos, uma descrição bem superficial de seus sentimentos.

No “Soneto de fidelidade” o eu-lírico descreve cada emoção com muita sinceridade e muito amor, seu ultimo verso é um exemplo de muita intensidade:
Mas que seja infinito enquanto dure.”
Podemos perceber a estética da intensidade nesse paradoxo que tem como intuito intensificar os sentimentos e produzir um efeito de sinceridade.

 Embora a intensidade não acrescente nada à verdade do texto, ainda assim, garante autenticidade porque ao intensificar, produz efeito de sinceridade.”
A estética da intensidade é acompanhada pela pragmática da sinceridade e destas sai a conceitualização moderna do talento como originalidade.

(Paul Veyne)

                                                                       (Mary Jane Hilário da Silva)
Comparação de poemas Lírico e Moderno

109

Minha vida!, me dizes que este nosso amor
será feliz aos dois, será eterno.
 Deuses grandes, fazei que prometa a verdade,
 que sincera e de coração o diga
 e que nos seja dado, a vida inteira, sempre
este pacto viver de amor sagrado.
                                  
                (1-6, Catulo)

Soneto de fidelidade
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encanta mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espelhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu posso me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

(Vinícius de Morais)

Os poemas podem ser comparados na linha de afinidades, visto que ambos abordam a durabilidade, a eternidade do amor. No verso 1° Catulo diz “Minha vida! me dizes que este nosso / Amor será feliz aos dois, será eterno.” Catulo começa o poema com o pronome de posse “Minha” como se fosse algo dele, precioso, único, que esse sentimento o completa.
Depois no 3° verso Catulo diz: “Deuses grandes, fazei que prometa a verdade, / que sincera e de coração o diga”. Ele recorre aos deuses para que não existam mentiras, nem falsas promessas. No verso 9°, Vinícius de Morais diz: “E assim, quando mais tarde me procure / Quem sabe a morte, angústia de quem vive / Quem sabe a solidão, fim de quem ama”, demonstrando que ele sofre de amor, como se vivesse plenamente essa situação e se coloca no texto “quando mais tarde me procure”, sensibilidade e sinceridade são visto no decorrer do poema.
Observando os versos 5° do Catulo “e que nos seja dado, a vida inteira, sempre
este pacto viver de amor sagrado.” e o verso 13° do Vinícius de Morais: “Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure.", ambos os autores mostram a intensidade do amor, o desejo que esse amor seja intenso, vivido até o último momento, sem pensar no futuro, somente no presente.
Segundo Veyne, a estética moderna é uma estética de intensidade. No texto de Vinícius de Morais, pode-se analisar os sentimentos a partir das conotações das palavras, que seriam “violentas tempestades”, como morte, angústia, solidão e outras mais, como se o leitor sentisse esses sentimentos. Tais sentimentos trabalhados por Vinícius passam a não ser somente palavras, como também constroem uma imagem, plasmam uma situação vivida.
O poema de Catulo expressa, mais objetivamente, como este se sente: que o amor vive em seu coração, que ele deseja que este sentimento e a relação amorosa sejam eternos. De acordo com Veyne, essa objetividade de Catulo é quase uma declaração de inverdade em relação ao sentimento retratado. Catulo é direto em seus desejos, chegando a demonstrar certa insensibilidade, como se nunca os tivesse de fato sentido.

 
                        (Jenneffer Fraga e Michelle Nascimento)

Cena íntima – Casimiro de Abreu
Casimiro de Abreu
Como estás hoje zangada
E como olhas despeitada
Só p'ra mim!
- Ora diz-me: esses queixumes,
Esses injustos ciúmes
Não têm fim?

Que pequei eu bem conheço,
Mas castigo não mereço
Por pecar;
Pois tu queres chamar crime
Render-me à chama sublime
Dum olhar!

Por ventura te esqueceste
Quando de amor me perdeste
Num sorrir?
Agora em cólera imensa
Já queres dar a sentença
Sem me ouvir!

E depois, se eu te repito
Que nesse instante maldito
- Sem querer -
Arrastado por magia
Mil torrentes de poesia
Fui beber!

Eram uns olhos escuros
Muito belos, muito puros,
Como os teus!
Uns olhos assim tão lindos
Mostrando gozos infindos,
Só dos céus!

Quando os vi fulgindo tanto
Senti no peito um encanto
Que não sei!
Juro falar-te a verdade...
Foi decerto - sem vontade -
Que eu pequei!

Mas hoje, minha querida,
Eu dera até esta vida
P'ra poupar
Essas lágrimas queixosas,
Que as tuas faces mimosas
Vêm molhar!

Sabe ainda ser clemente,
Perdoa um erro inocente
Minha flor!
Seja grande embora o crime
O perdão sempre é sublime
Meu amor!

Mas se queres com maldade
Castigar quem - sem vontade -
Só pecou;
Olha, linda, eu não me queixo,
A teus pés cair me deixo...
Aqui estou!

Mas se me deste, formosa,
De amor na taça mimosa
Doce mel;
Ai! deixa que peça agora
Esses extremos d'outrora
O infiel:

Prende-me... nesses teus braços
Em doces, longos abraços
Com paixão;
Ordena com gesto altivo...
Que te beije este cativo
Essa mão!

Mata-me sim... de ventura,
Com mil beijos de ternura
Sem ter dó,
Que eu prometo, anjo querido,
Não desprender um gemido,
Nem um só!


Catulo
Repetias outrora que tu, Lésbia,
mantinhas íntimas relações com Catulo
e que nem a Júpiter querias ter em teus braços
em meu lugar. Eu te amei então não só
como os homens geralmente amam a mulher amada,
mas também como um pai ama seus filhos e genros.
Hoje eu sei quem és e é por isto que
Embora eu me inflame mais ardentemente de amor
Contudo é para mim muito mais desprezível e
Muito mais sem valor. “Como pode ser isto?!”, perguntas.
Porque tal traição impele o amante a amar mais
Mas a não querer mais tanto bem.

 
Acerca do eixo comum no qual o entorno é gravitado por ambas as poesias, explicita-se a sua problemática: a infidelidade amorosa sob a dicotomia infiel X traído.
Em “Cena Íntima”, de Casimiro de Abreu, poeta brasileiro inserido estilisticamente na 2ª geração Romântica, o eu-lírico é um homem que admite ter sido infiel à amada, sua interlocutora no texto. A estética da intensidade colocada por Paul Veyne (1985) – que a menciona, inclusive, como possuindo nesse estilo seus primeiros sintomas, e de uma maneira voraz – encontra-se tão amalgamada ao poema que, já no comportamento do sujeito poético em relação à sua mulher, ela pode ser facilmente definida.
Nesse viés, tem-se o sujeito optando por se mostrar, acima de tudo, tão sincero, que ele, de imediato, reconhece o seu erro em “Que pequei eu bem conheço” (2ª estrofe). Entrementes, tendo-se em vista que o seu ato lhe era desfavorável, ele se justifica como alguém que apenas se entregou a uma paixão fortuita e momentânea, a fim de se eximir de uma possível punição, como visto nos versos subsequentes: “Mas castigo não mereço / Por pecar; / Pois tu queres chamar crime / Render-me à chama sublime / Dum olhar!”. Mais adiante, atrelando-se a 4ª estrofe (E depois, se eu te repito / Que nesse instante maldito / – Sem querer – / Arrastado por magia / Mil torrentes de poesia / Fui beber!”) à 6ª (“Quando os vi fulgindo tanto / Senti no peito um encanto / Que não sei! / Juro falar-te a verdade... / Foi decerto – sem vontade – / Que eu pequei!”), percebe-se, nitidamente, em contraposição à tentativa de sempre se mostrar sincero com seus sentimentos para com a amada traída, uma ausência de compromisso com o caráter lógico do que expressa. Isso acentua, pois, a inevitabilidade de não sucumbir ao sentimento passional, tido como força até mesmo sobrenatural, já que está numa esfera tão essencialmente emocional que acima da vontade racional consciente humana. Ademais, ainda com o intuito de se abster da culpa, para aparentar veracidade, ele age de forma intensa e exagerada, tal qual estes versos salientam: “Eu dera até esta vida / P’ra poupar / essas lágrimas queixosas ” (7ª estrofe); “Olha, linda, eu não me queixo, / A teus pés cair me deixo... / Aqui estou!” (9ª estrofe); “Ordena com gesto altivo... / Que te beije este cativo” (11ª estrofe); “Mata-me sim... de ventura / Com mil beijos de ternura / Sem ter dó” (12ª estrofe). Essa maneira de agir é também acentuada, ao longo de todo o poema, por uma pontuação expressiva usada pelo autor, bem como pelo insistente uso de vocativos de valor afetivo nas 7ª, 8ª, 9ª e 10ª estrofes.
Conseguintemente, o quadro analítico desenvolvido vai ao encontro da estética supracitada, ilustrando-a perfeitamente, uma vez que ela fala sobre a necessidade Moderna de uma intensidade quase brutal. Para isso, na poesia, tem de se mostrar a sinceridade, que ocorre, por exemplo, por meio de uma fluidez sentimental; violência imagética; exploração psicológica profunda; vivência total das paixões, por si mesmas, independente do seu objeto (no caso, da mulher); atitudes fortes dotadas de emoção; exagero; ilogicidade; entre outros, como elucidados em tal poesia.
Por outro lado, o poema de Catulo, poeta Clássico romano, choca-se incrivelmente com o de Casimiro de Abreu, não obstante apresente a mesma temática. Neste, o eu-poemático é, também, um homem que dialoga com a amada; no entanto, é ele o traído, e a mulher, quem cometeu a traição.
Já no início do poemeto, “Repetias outrora que tu, Lésbia, / mantinhas íntimas relações somente com Catulo / e que nem a Júpiter querias ter em teus braços em meu lugar.”, há um enfoque, desta vez, não na questão da sinceridade do infiel, mas pelo contrário: na sua não importância em proferir palavras verdadeiras. Além disso, quanto ao 2º verso transcrito, pode-se dizer que se percebe, aparentemente, uma grande distância emocional do eu-poético para consigo, já que se refere a si na 3ª pessoa do singular. Os versos ulteriores aos mostrados, por sua vez – “... Eu te amei então não só / como os homens geralmente amam a mulher amada, / mas também como um pai ama seus filhos e genros.” – deixam claro uma tentativa da figura masculina expor quão imenso era o seu amor por uma comparação com o amor de família, que, consoante Veyne, era deveras sagrado. Apesar disso, tal comparação acaba adquirindo, após a Modernidade, um efeito inverso: tendo-se em vista o culto à intensidade por meio de uma passionalidade violenta, se se é feito o oposto, mostrando-se a sobriedade sublime, deduz-se a falta de intensidade, a insentimentalidade. Posteriormente, no antepenúltimo verso, quando Lésbia pergunta “Como pode ser isto?” qual reação a Catulo, vê-se imediatamente um forte contraste entre a forma que ela agiu ao descobrimento da infidelidade e a outra poesia, quase indiferente se comparada a todo o exagero já trabalhado do eu-lírico de Casimiro de Abreu, permeado pela estética da intensidade. Deve-se dissertar, ainda, sobre as sequências “Hoje eu sei quem és e é por isto que / embora eu me inflame mais ardentemente de amor / contudo és para mim muito mais desprezível e / muito mais sem valor.” com “Porque tal traição impele o amante a amar mais / mas a não querer mais tanto bem.”, que, juntas, deixam entrever uma “luta contra a tirania da paixão” (exatamente como disse Veyne), uma “renúncia ao amor” (destacada no livro “Lírica e Lugar-Comum” como frequente na poesia Antiga). Isso ocorre porque o argumento sentimental é colocado como inferior ao racional, fato mormente acentuado pelas conjunções “embora” e “mas”, que, estruturalmente, possuem a qualidade de introduzirem a ideia mais fraca e a mais forte, respectivamente, dos trechos que interligam. Por fim, mais uma vez opondo os textos estudados, pode-se dizer que a pontuação e o vocabulário neutros utilizados por Catulo, na composição de seu poema, corroboram para direcionar a interpretação numa direção em que o sujeito-poético do primeiro é muito mais intenso que o do segundo.
Reiterando-se o contraste entre os poemas analisados com embasamento no texto trabalhado em sala de Paul Veyne, bem como no livro “Lírica e Lugar-Comum” de Francisco Achcar, pode-se dizer que, chocando-se com o ébrio feitio composicional da primeira obra, esta última apresenta todo um teor sóbrio formal e de conteúdo com inúmeras peculiaridades provindas disso. Isso faz com que se enxergue, em Catulo, um sujeito frígido e distante de si mesmo e de sua amada, além do próprio leitor, que acaba por não se identificar interiormente ao vê-lo como inverossímil e não sincero. No entanto, deve-se, qual Veyne, ter em mente que isso tudo se deve por termos entranhado em nossa na carne uma histórica estética da intensidade que filtra a nossa visão.

         (Camilla Barros Gonçalves da Silva e Elisa Bragança Curi Magalhães de Souza )

Caio Valério Catulo

Meu pobre Catulo põe um termo neste delirar
e considera perdido o que vês que se perdeu.
Em tempos passados sóis luminosos brilharam
quanto tu, constantemente, corrias
para onde te chamava a jovem por nós tão amada
quanto nenhuma outra será jamais amada.
Nestes encontros então aconteciam aqueles
inumeráveis momentos de prazer: o que tu querias
a jovem também não o deixava de querer.
Sóis luminosos realmente brilharam para ti.
Hoje, porem, ela já não quer mais.
Também tu, incapaz de te conteres, não queiras mais,
não persigas aquela que te foge, não vivas infeliz,
mas conserva inflexível teu espírito, resiste.
Adeus, minha jovem amiga, Catulo já resiste,
não mais irá te procurar, não mais te convidará
a um encontro, se não o desejares.
Mas tu chorarás quando não mais fores solicitada
Ai de ti, infeliz. Que vida te está reservada?
Que homem irá ter contigo?
A quem parecerás bela? Agora a quem amarás?
A quem dirão que pertences? A quem beijarás?
De quem morderás os lábios?
Mas tu Catulo, resiste.

Aparição
Um dia, meu amor (e talvez cedo, 
Que já sinto estalar-me o coração!) 
Recordarás com dor e compaixão 
As ternas juras que te fiz a medo... 
Então, da casta alcova no segredo, 
Da lamparina ao trémulo clarão, 
Ante ti surgirei, espectro vão, 
Larva fugida ao sepulcral degredo... 
E tu, meu anjo, ao ver-me, entre gemidos 
E aflitos ais, estenderás os braços 
Tentando segurar-te aos meus vestidos... 
— «Ouve! espera!» — Mas eu, sem te escutar, 
Fugirei, como um sonho, aos teus abraços 
E como fumo sumir-me-ei no ar! 
Antero de Quental, in "Sonetos"

Tanto no poema de Caio Valério Catulo quanto no de Antero de Quental temos o grande amor, característico da lírica:
quanto tu, constantemente, corrias
para onde te chamava a jovem por nós tão amada
quanto nenhuma outra será jamais amada.
Nestes encontros então aconteciam aqueles
inumeráveis momentos de prazer: o que tu querias
a jovem também não o deixava de querer.
Sóis luminosos realmente brilharam para ti.” (Catulo)

As ternas juras que te fiz a medo...” (Antero de Quental)

E, ainda, temos espécie de advertência a essa mulher amada de que aquele que tanto a ama partirá de sua vida; que esse amor imenso não será mais o mesmo. E esse será o ponto central de ambos os poemas – o amor que se tornará apenas uma recordação:

Adeus, minha jovem amiga, Catulo já resiste,
não mais irá te procurar, não mais te convidará
a um encontro, se não o desejares.
Mas tu chorarás quando não mais fores solicitada
Ai de ti, infeliz. Que vida te está reservada?
Que homem irá ter contigo?
A quem parecerás bela? Agora a quem amarás?
A quem dirão que pertences? A quem beijarás?
De quem morderás os lábios?” (Catulo)

Recordarás com dor e compaixão (...)E tu, meu anjo, ao ver-me, entre gemidos 
E aflitos ais, estenderás os braços 
Tentando segurar-te aos meus vestidos... 
— «Ouve! espera!» — Mas eu, sem te escutar, 
Fugirei, como um sonho, aos teus abraços 
E como fumo sumir-me-ei no ar!” (Antero de Quental)

Há duas características diferentes entre os poemas. No poema de Catulo, o tempo do amor é passado, e o presente já é a ruptura entre o eu lírico e a mulher amada, que se estenderá pelo futuro. Já no poema de Antero de Quental, o tempo do amor é presente, mas a ruptura se mostra como algo que virá em breve, o que a faz ser, até mesmo, em sentido de presente, e não de futuro, porém, seguindo por esse. Outra diferença é que no poema de Catulo, o eu lírico não é o próprio apaixonado, mas outro que acompanha sua história e o instrui sobre como agir, e se dirige à mulher por esse homem amada, advertindo-a da transformação por que passará esse amor. Já em “Aparição”, o próprio eu lírico se dirige à mulher amada, já que ele mesmo é o homem que a ama.

A teórica Zélia de Almeida Cardoso (2003) separa a produção de Catulo em três grupos e nos mostra características claras tanto do primeiro quanto do terceiro grupo que podemos perceber no poema ora retratado: a tristeza é a maior delas, mas também presentes a amargura, o desencanto, que notamos também na obra de Antero de Quental. O eu lírico em Catulo tem, ainda, uma agressividade que não é tão forte em Antero de Quental. Entretanto, é notória a desilusão que essas mulheres (“musas”) causam nesses homens apaixonados.
O teórico Paul Veyne (1985) retrata sobre as formas do clássico e do moderno. A intensidade com que o eu lírico vive esse amor, notamos mais forte em Catulo do que em Antero de Quental, e o isolamento a que esse amor leva esse eu lírico são características bastante ressaltadas no moderno, mas claras na obra de Catulo. A intensidade ao expressar seus sentimentos é algo bastante trabalhado pelo autor em seu texto e que notamos nas obras comparadas.

(Alexandre Silva e Bianca Sant’Anna)

Referências Bibliográficas:
CARDOSO, Zelia de Almeida. A Literatura Latina. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
VEYNE, Paul. A elegia erótica romana. São Paulo: Brasiliense, 1985.
QUENTAL, Antero de. Sonetos: Org.: António Sérgio. Lisboa: Sá da Costa, 1979.