"Mvsa mihi cavsas memora"

quinta-feira, 30 de junho de 2011

SIMPLICIDADE E EFEMERIDADE NA POESIA LÍRICA

A poesia lírica surgida em Roma nas imediações do período augustano é certamente um estilo decisivo para toda a poesia através da história. Principalmente através da consagração dos temas tratados, a lírica do período cristaliza no imaginário popular imagens de amor, simplicidade, desprendimento, que até hoje influenciam músicos e poetas quando tratam dos mesmos temas. Através da repetição, a lírica romana, fortemente inspirada em poetas gregos (líricos ou não, como é o caso de Homero) cria lugares comuns, “topoi”, a cuja familiaridade ainda hoje muitos escritores lançam mão para elucidar o estado apaixonado e envolvente a que, quando em vez, a alma humana ainda se entrega.
Muitas são as imagens cristalizadas pelo estilo: imagens de mulher – amante, musa, cuja beleza flerta com o divino –; o “locus amenus”, a casa no campo, a casinha de palha,a que árcades e hippies tentaram em vão regressar. Neste trabalho, serão abordadas duas tópicas famosas, a efemeridade e a simplicidade, esta frequentemente traduzida pelo desapego ou pela aversão à riqueza, ao luxo e, certas vezes, à fama. A título de comparação, e também para demonstrar quão vívidos ainda estão esses “lugares comuns” no imaginário contemporâneo, foi escolhidas
a letra de música “The Wanderer”, do grupo Jil is lucky, aqui confrontada com excertos da obra de Tibulo.


THE WANDERER

There are flowers in my room,
and they don't need a job
They just need time
to grow and die
And the lovers in their cloud
don't give a shit about money
They're here to try
to stay side by side
But it's so hard

'Cause the morning always comes to kill the dream
You had the night before”


O VAGABUNDO (Jil is Lucky)

Tem flores no meu quarto, e não precisam trabalhar
Só precisam de tempo p'ra crescer e murchar
E os amantes, em sua nuvem, não precisam de dinheiro
Eles estão aqui para tentar permanecer juntos,
mas é tão duro!

Porque a alvorada sempre chega e mata os sonhos
que você sonhou na noite anterior”

Na letra da música, encontramos algumas temáticas tipicamente horacianas. Segundo Zélia de Almeida Cardoso “Horácio apresenta (…) ideias sobre amor, a brevidade da vida, a necessidade de viver o momento presente, a procura do prazer” (NOVAK, Maria da Glória e NERI, Maria Luiza, org. Poesia Lírica Latina, Martins Fontes, São Paul. 1992. página XI). Através da símile entre as flores e os amantes, o autor estabelece a afetividade como um sentimento restrito à condição material, corpórea da vida. A metáfora da alvorada, por sua vez, exemplifica a afirmação de Francisco Achcar, ao dizer que “a lírica concentra-se no estreito limite do presente, na brevidade da canção” (ACHCAR, Francisco. Lírica e Lugar-Comum: alguns temas de Horácio e sua presença em português. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1994. página 59). Nesse sentido, o dia torna-se a unidade de tempo utilizada pelos poetas para mensurar a duração de um sentimento ou de uma relação: a brevidade de um dia é a unidade máxima. E, Catulo, a preocupação com o dia fica expressa em

Brilharam-te, realmente, belos dias de sol”(Catulo 8, 8)

A comparação de amantes a flores de curta duração sugere-nos ainda a exaltação da juventude como “estação” da vida quando o amor deve ser desfrutado. Encontramos a correlação da juventude e do amor carnal em Tibulo, em

logo, sub-reptícia, virá a idade inerte, e não ficará bem amar
ou dizer palavras ternas de cabeça branca”

e se confirma em

“ – laços que permaneçam para sempre, enquanto a lenta velhice
trouxer as rugas e desbotar os cabelos” (Tibulo, II, 19-20)


não se tratando, pois, de amor transcedental, pretensioso.
A metáfora das nuvens, por sua vez, reforça a ideia de que os amantes, “pairando” sobre a realidade sem tangencia-la, escapam de diversos perigos. A nuvem já era elemento comum na poesia épica, quando Vênus envolve Eneias em nuvens que o levam a sua futura amante Dido, e antes disso, em Homero, quando envolta em nuvens Helena vai ao encontro de Páris. Aqui, a metáfora dialoga com Tibulo, para quem os amantes estão liberados das necessidades orgânicas e materiais do corpo. Em um de seus poemas, Tibulo chega a dizer:

os ricos desprezarei e desprezarei a fome” (Tibulo, I, 78)

O amor é comumente a preocupação central destes poetas. Em Catulo, por exemplo, observa-se tratamentos estéticos diferentes para diferentes temas: o amor recebe métrica imprecisa, “a linguagem é simples, espontânea” (Lírica Latina, página X). Em “The Wanderer”, percebe-se também o descaso, ainda que proposital, com a linguagem, com o uso de gírias (“Don't give a shit about the money”) e de contrações (da palavra “because” para “'Cause”).
Tibulo é emblemático do painel bucólico, simples, do amor que é finalidade em si mesmo – e somente assim é puro. O sentimento está no centro, como que regente de uma vida que, repleta pelo sentimento correspondido, alimenta desprezo àquilo que exceda as necessidades básicas da sobrevivência.“Tibulo canta o amor puro e desinteressado, entendendo-se por pureza não o matrimônio, mas, sim, a sinceridade amorosa que faz uma pessoa inclinar-se por outra e deseja-la” (72, poesia lírica).
A lírica latina não se preocupa com a introdução de elementos inovadores. Pelo contrário, caracteriza-se em algum grau por sua rigidez, pelo compromisso temático e estético que, por assim dizer, punha rédeas nas palavras dos poetas. Sendo assim, o gênero é composto por fórmulas consagradas, figuras de linguagem que se repetem, metáforas que dialogam entre si, aludindo umas às outras. Nesse sentido, o próprio clichê, a despretensão de encontrar a “rima perfeita” ou uma metáfora por demais rebuscada, conduz a lírica latina aos “topoi”, aos lugares comuns, aos clichês. Essa familiaridade tem um efeito de simplicidade que condiz com a temática lírica.

                                                           (Carmen Lúcia de Carvalho)

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