"Mvsa mihi cavsas memora"

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Cena íntima – Casimiro de Abreu
Casimiro de Abreu
Como estás hoje zangada
E como olhas despeitada
Só p'ra mim!
- Ora diz-me: esses queixumes,
Esses injustos ciúmes
Não têm fim?

Que pequei eu bem conheço,
Mas castigo não mereço
Por pecar;
Pois tu queres chamar crime
Render-me à chama sublime
Dum olhar!

Por ventura te esqueceste
Quando de amor me perdeste
Num sorrir?
Agora em cólera imensa
Já queres dar a sentença
Sem me ouvir!

E depois, se eu te repito
Que nesse instante maldito
- Sem querer -
Arrastado por magia
Mil torrentes de poesia
Fui beber!

Eram uns olhos escuros
Muito belos, muito puros,
Como os teus!
Uns olhos assim tão lindos
Mostrando gozos infindos,
Só dos céus!

Quando os vi fulgindo tanto
Senti no peito um encanto
Que não sei!
Juro falar-te a verdade...
Foi decerto - sem vontade -
Que eu pequei!

Mas hoje, minha querida,
Eu dera até esta vida
P'ra poupar
Essas lágrimas queixosas,
Que as tuas faces mimosas
Vêm molhar!

Sabe ainda ser clemente,
Perdoa um erro inocente
Minha flor!
Seja grande embora o crime
O perdão sempre é sublime
Meu amor!

Mas se queres com maldade
Castigar quem - sem vontade -
Só pecou;
Olha, linda, eu não me queixo,
A teus pés cair me deixo...
Aqui estou!

Mas se me deste, formosa,
De amor na taça mimosa
Doce mel;
Ai! deixa que peça agora
Esses extremos d'outrora
O infiel:

Prende-me... nesses teus braços
Em doces, longos abraços
Com paixão;
Ordena com gesto altivo...
Que te beije este cativo
Essa mão!

Mata-me sim... de ventura,
Com mil beijos de ternura
Sem ter dó,
Que eu prometo, anjo querido,
Não desprender um gemido,
Nem um só!


Catulo
Repetias outrora que tu, Lésbia,
mantinhas íntimas relações com Catulo
e que nem a Júpiter querias ter em teus braços
em meu lugar. Eu te amei então não só
como os homens geralmente amam a mulher amada,
mas também como um pai ama seus filhos e genros.
Hoje eu sei quem és e é por isto que
Embora eu me inflame mais ardentemente de amor
Contudo é para mim muito mais desprezível e
Muito mais sem valor. “Como pode ser isto?!”, perguntas.
Porque tal traição impele o amante a amar mais
Mas a não querer mais tanto bem.

 
Acerca do eixo comum no qual o entorno é gravitado por ambas as poesias, explicita-se a sua problemática: a infidelidade amorosa sob a dicotomia infiel X traído.
Em “Cena Íntima”, de Casimiro de Abreu, poeta brasileiro inserido estilisticamente na 2ª geração Romântica, o eu-lírico é um homem que admite ter sido infiel à amada, sua interlocutora no texto. A estética da intensidade colocada por Paul Veyne (1985) – que a menciona, inclusive, como possuindo nesse estilo seus primeiros sintomas, e de uma maneira voraz – encontra-se tão amalgamada ao poema que, já no comportamento do sujeito poético em relação à sua mulher, ela pode ser facilmente definida.
Nesse viés, tem-se o sujeito optando por se mostrar, acima de tudo, tão sincero, que ele, de imediato, reconhece o seu erro em “Que pequei eu bem conheço” (2ª estrofe). Entrementes, tendo-se em vista que o seu ato lhe era desfavorável, ele se justifica como alguém que apenas se entregou a uma paixão fortuita e momentânea, a fim de se eximir de uma possível punição, como visto nos versos subsequentes: “Mas castigo não mereço / Por pecar; / Pois tu queres chamar crime / Render-me à chama sublime / Dum olhar!”. Mais adiante, atrelando-se a 4ª estrofe (E depois, se eu te repito / Que nesse instante maldito / – Sem querer – / Arrastado por magia / Mil torrentes de poesia / Fui beber!”) à 6ª (“Quando os vi fulgindo tanto / Senti no peito um encanto / Que não sei! / Juro falar-te a verdade... / Foi decerto – sem vontade – / Que eu pequei!”), percebe-se, nitidamente, em contraposição à tentativa de sempre se mostrar sincero com seus sentimentos para com a amada traída, uma ausência de compromisso com o caráter lógico do que expressa. Isso acentua, pois, a inevitabilidade de não sucumbir ao sentimento passional, tido como força até mesmo sobrenatural, já que está numa esfera tão essencialmente emocional que acima da vontade racional consciente humana. Ademais, ainda com o intuito de se abster da culpa, para aparentar veracidade, ele age de forma intensa e exagerada, tal qual estes versos salientam: “Eu dera até esta vida / P’ra poupar / essas lágrimas queixosas ” (7ª estrofe); “Olha, linda, eu não me queixo, / A teus pés cair me deixo... / Aqui estou!” (9ª estrofe); “Ordena com gesto altivo... / Que te beije este cativo” (11ª estrofe); “Mata-me sim... de ventura / Com mil beijos de ternura / Sem ter dó” (12ª estrofe). Essa maneira de agir é também acentuada, ao longo de todo o poema, por uma pontuação expressiva usada pelo autor, bem como pelo insistente uso de vocativos de valor afetivo nas 7ª, 8ª, 9ª e 10ª estrofes.
Conseguintemente, o quadro analítico desenvolvido vai ao encontro da estética supracitada, ilustrando-a perfeitamente, uma vez que ela fala sobre a necessidade Moderna de uma intensidade quase brutal. Para isso, na poesia, tem de se mostrar a sinceridade, que ocorre, por exemplo, por meio de uma fluidez sentimental; violência imagética; exploração psicológica profunda; vivência total das paixões, por si mesmas, independente do seu objeto (no caso, da mulher); atitudes fortes dotadas de emoção; exagero; ilogicidade; entre outros, como elucidados em tal poesia.
Por outro lado, o poema de Catulo, poeta Clássico romano, choca-se incrivelmente com o de Casimiro de Abreu, não obstante apresente a mesma temática. Neste, o eu-poemático é, também, um homem que dialoga com a amada; no entanto, é ele o traído, e a mulher, quem cometeu a traição.
Já no início do poemeto, “Repetias outrora que tu, Lésbia, / mantinhas íntimas relações somente com Catulo / e que nem a Júpiter querias ter em teus braços em meu lugar.”, há um enfoque, desta vez, não na questão da sinceridade do infiel, mas pelo contrário: na sua não importância em proferir palavras verdadeiras. Além disso, quanto ao 2º verso transcrito, pode-se dizer que se percebe, aparentemente, uma grande distância emocional do eu-poético para consigo, já que se refere a si na 3ª pessoa do singular. Os versos ulteriores aos mostrados, por sua vez – “... Eu te amei então não só / como os homens geralmente amam a mulher amada, / mas também como um pai ama seus filhos e genros.” – deixam claro uma tentativa da figura masculina expor quão imenso era o seu amor por uma comparação com o amor de família, que, consoante Veyne, era deveras sagrado. Apesar disso, tal comparação acaba adquirindo, após a Modernidade, um efeito inverso: tendo-se em vista o culto à intensidade por meio de uma passionalidade violenta, se se é feito o oposto, mostrando-se a sobriedade sublime, deduz-se a falta de intensidade, a insentimentalidade. Posteriormente, no antepenúltimo verso, quando Lésbia pergunta “Como pode ser isto?” qual reação a Catulo, vê-se imediatamente um forte contraste entre a forma que ela agiu ao descobrimento da infidelidade e a outra poesia, quase indiferente se comparada a todo o exagero já trabalhado do eu-lírico de Casimiro de Abreu, permeado pela estética da intensidade. Deve-se dissertar, ainda, sobre as sequências “Hoje eu sei quem és e é por isto que / embora eu me inflame mais ardentemente de amor / contudo és para mim muito mais desprezível e / muito mais sem valor.” com “Porque tal traição impele o amante a amar mais / mas a não querer mais tanto bem.”, que, juntas, deixam entrever uma “luta contra a tirania da paixão” (exatamente como disse Veyne), uma “renúncia ao amor” (destacada no livro “Lírica e Lugar-Comum” como frequente na poesia Antiga). Isso ocorre porque o argumento sentimental é colocado como inferior ao racional, fato mormente acentuado pelas conjunções “embora” e “mas”, que, estruturalmente, possuem a qualidade de introduzirem a ideia mais fraca e a mais forte, respectivamente, dos trechos que interligam. Por fim, mais uma vez opondo os textos estudados, pode-se dizer que a pontuação e o vocabulário neutros utilizados por Catulo, na composição de seu poema, corroboram para direcionar a interpretação numa direção em que o sujeito-poético do primeiro é muito mais intenso que o do segundo.
Reiterando-se o contraste entre os poemas analisados com embasamento no texto trabalhado em sala de Paul Veyne, bem como no livro “Lírica e Lugar-Comum” de Francisco Achcar, pode-se dizer que, chocando-se com o ébrio feitio composicional da primeira obra, esta última apresenta todo um teor sóbrio formal e de conteúdo com inúmeras peculiaridades provindas disso. Isso faz com que se enxergue, em Catulo, um sujeito frígido e distante de si mesmo e de sua amada, além do próprio leitor, que acaba por não se identificar interiormente ao vê-lo como inverossímil e não sincero. No entanto, deve-se, qual Veyne, ter em mente que isso tudo se deve por termos entranhado em nossa na carne uma histórica estética da intensidade que filtra a nossa visão.

         (Camilla Barros Gonçalves da Silva e Elisa Bragança Curi Magalhães de Souza )

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