"Mvsa mihi cavsas memora"

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Castro Alves e Catulo
 

Castro Alves

Sonho da boêmia

DAMA NEGRA


I


VAMOS, meu anjo, fugindo,
A todos sempre sorrindo,
Bem longe nos ocultar...
Como boêmios errantes,
Alegres e delirantes
Por toda a parte a vagar.

 

II


Há tanto canto na terra
Que uma vida inteira encerra!...
E que vida!... Um céu de amor!
Seremos dois passarinhos,
Faremos os nossos ninhos
Lá onde ninguém mais for.



III


Uma casinha bonita,
Lá na mata que se agita
Do vento ao mole soprar,
Com as folhas secas da selva
Com o lençol verde da relva
Oh! quanto havemos de amar!...



IV


De manhã, inda bem cedo,
Hás de acordar, anjo ledo,
Junto do meu coração...
Ao canto alegre das aves
As nossas canções suaves,
Quais preces se ajuntarão.



V


Passearemos à sesta...
Sonharemos na floresta,
Sempre felizes, meu Deus!...
Nalma lânguida esteira,
Quanta cantiga faceira
Ouvirei dos lábios teus!...



VI


E à noite, no mesmo leito
Reclinada no meu peito,
Hei de ouvir os cantos teus.
A cada estrofe bonita
No teu seio, que palpita,
Terás cem beijos, por Deus!



VII


Farei poesias ou versos
Aos teus olhinhos perversas
Aos teus "anhos, meu bem!
Tu cantarás, é Manola,
Aquela moda espanhola
Que tantos requebros tem!



VIII


Depois, que lindas viagens!...
Veremos novas paisagens,
No sul, no norte, onde for...
Voando sempre, querida,
Co'a primavera da vida,
Co'a primavera do amor.



IX

Vamos, meu anjo, fugindo,
A todos sempre sorrindo
Bem longe nos ocultar.
Como boêmios errantes
Que repetem delirantes:
"P'ra ser feliz basta amar"!
 

 
Caio Valério Catulo
 
Vivamos, minha Lésbia, amemo-nos,
e a todas as censuras de velhos
demasiadamente austeros
demos o valor de um único asse.
Os sóis podem se pôr e retornar;
quando porém numa única vez a breve luz
de nossas vidas desaparece no acaso,
somos obrigados a dormir uma noite sem fim.
Dá-me mil beijos, depois cem,
a seguir outros mil e mais cem
e depois ininterruptamente outros
mil e mais cem.
A seguir, depois que tivermos trocado
estes muitos milhares de beijos,
alteraremos a soma deles para que
não saibamos quantos foram ou
para que nenhum invejoso possa nos
lançar um mau-olhado quando souber
exatamente o número destes beijos.
                                                                              L.M.
 
Podemos observar tanto na poesia de Catulo, quanto na de Castro Alves, o desejo de viver intensamente ao lado da amada, como se isso fosse a única coisa que importasse na vida:

“Vivamos, minha Lésbia, amemo-nos,” Catulo.
"P'ra ser feliz basta amar"! Castro Alves.
            No poema de Catulo, o poeta “se dirige a uma espécie de musa inspiradora à qual  dá o nome de Lésbia” ,como afirma Zélia de Almeida Cardoso em “A poesia latina”. Castro Alves dedica o poema a Eugênia da Câmara, que às vezes aparece como Dama Negra, entretanto, no poema é chamada apenas de anjo.
            Nas duas poesias podemos notar o convite ao amor. Na poesia de Catulo o eu-lírico não parece preocupado com a opinião alheia, ele quer ser feliz com sua amada sem inquietar-se com as censuras dos outros:
“Vivamos, minha Lésbia, amemo-nos,
e a todas as censuras de velhos
demasiadamente austeros
demos o valor de um único asse.”
Já na poesia de Castro Alves, o eu-lírico prefere se ocultar com sua amada pelo mundo:

“VAMOS, meu anjo,fugindo,
A todos sempre sorrindo,
Bem longe nos ocultar...
Como boêmios errantes,
Alegres e delirantes
Por toda a parte a vagar.”

Na estrofe acima percebemos também o convite à boemia, ou seja, a esse estilo de vida não-convencional, aqui é reforçada a ideia de que nada mais na vida importa, além do amor.
            Nos dois poemas observamos a idéia de liberdade:
 

“Depois, que lindas viagens...
Veremos novas paisagens,
No sul, no norte, onde for...
Voando sempre, querida,
Co'a primavera da vida,
Co'a primavera do amor.”

Castro Alves
 
“Os sóis podem se pôr e retornar;
quando porém numa única vez a breve luz
de nossas vidas desaparece no acaso,
somos obrigados a dormir uma noite sem fim.”
Catulo
 
            Percebe-se que a poesia de Castro Alves é mais intensa, por isso nos parece mais sincera, pode-se até imaginar as cenas do poema, pois há uma ostentação de imagens:
 
III


Uma casinha bonita,
Lá na mata que se agita
Do vento ao mole soprar,
Com as folhas secas da selva
Com o lençol verde da relva
Oh! quanto havemos de amar!...

 
V


Passearemos à sesta...
Sonharemos na floresta,
Sempre felizes, meu Deus!...
Nalma lânguida esteira,
Quanta cantiga faceira
Ouvirei dos lábios teus!...

Essa intensidade dos modernos se deve a exigência que suscitava uma nova visão estética, segundo Paul Veyne, “a busca da intensidade faz dar forma à realidade de uma maneira nova, os artistas acreditam escrever como fazem para parecer fiéis à sua visão nova das coisas...”
Paul Veyne afirma também que “Para nós, um verdadeiro poeta se reconhece por uma certa intensidade que passa por ser a marca própria do lirismo; a poesia que amamos é um álcool forte, e isto é assim há dois séculos. A estética moderna é uma estética de intensidade...”
O fato de a poesia moderna ser mais intensa não diminui o valor da poesia antiga, pois “a antiguidade conceituava o talento como uma virtuosidade técnica.” Paul Veyne.
Por fim, embora os dois poemas mostrem um convite ao amor, o de Catulo parece querer convencer a mulher amada a se entregar a essa paixão, já no de Castro Alves, ele parece querer largar tudo e viver com a amada pelo mundo para que juntos possam viver esse amor, longe de tudo e de todos, não se importando com mais nada:


“Há tanto canto na terra
Que uma vida inteira encerra!...
E que vida!... Um céu de amor!
Seremos dois passarinhos,
Faremos os nossos ninhos
Lá onde ninguém mais for.”

Referências bibliográficas:
CARDOSO, Zélia de Almeida. A Literatura Latina. Martins Fontes. SP. 2003.
VEYNE, Paul. Epílogo: Nosso estilo intenso, ou porque a poesia antiga nos causa tédio. in: A elegia erótica romana

(Cristiane de Santana Silva)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Agora é com você: