"Mvsa mihi cavsas memora"

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Comparação: A Lésbia de Catulo e a Lídia de Ricardo Reis

V (Catulo)
Vivamos, minha Lésbia, amemo-nos,
e a todas as censuras de velhos
demasiadamente austeros
demos o valor de um único asse.
Os sóis podem se pôr e retornar;
quando porém numa única vez a breve luz
de nossas vidas desaparece no acaso,
somos obrigados a dormir uma noite sem fim.
Dá-me mil beijos, depois cem,
a seguir outros mil e mais cem
e depois ininterruptamente outros
mil e mais cem.
A seguir,depois que tivermos trocado
estes muitos milhares de beijos,
alteraremos a soma deles para que
não saibamos quantos foram ou
para que nenhum invejoso possa
lançar um mau-olhado quando souber
exatamente o número destes beijos.

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio (Ricardo Reis)

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer nao gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassosegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,
Se quise'ssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente nao cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-as de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o o'bolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.


Podemos perceber que os dois poemas tratam do “carpe diem”, ou seja, o desejo de fruir o presente, aproveitar o momento.
No 1º verso de ambos, surge o convite à amada a fruição amorosa, tendo no primeiro o uso da 1ª pessoa do plural com sentido imperativo e o segundo um vocativo de segunda pessoa:

Vivamos minha Lésbia, amemo-nos”

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio”

Nas segundas estrofes vemos a consciência de que a vida é breve, efêmera, e isso justificaria a vivência amorosa em cada momento:

Os sóis podem se pôr e retornar;
quando porém numa única vez a breve luz
de nossas vidas desaparece no acaso,
somos obrigados a dormir uma noite sem fim.”

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.”

A partir da terceira estrofe os dois poemas se diferem: O poema de Catulo apresenta os excessos do amor físico, representados por mil, cem beijos, hipérbole repetida várias vezes, que segundo Paul Veyne garante maior autenticidade porque ao intensificar, produz efeito de sinceridade, embora na Grécia e Roma antiga as elegias amorosas fossem insinceras. O poema de Ricardo Reis por sua vez evita os excessos, o que fica claro até a 6ª estrofe. O eu lírico renuncia ao prazer do fugaz momento, em que nota-se uma perda do impulso amoroso que fica contida e vai se anulando ,chegando a quase indiferença e incomunicabilidade, simbolizando um viver que nega a paixão.

Dá-me mil beijos, depois cem,
a seguir outros mil e mais cem
e depois ininterruptamente outros
mil e mais cem.”

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,
Se quise'ssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.”

Apesar dos poemas tratarem o mesmo tema, a maneira como é apresentado neles é totalmente diferente: Em um o aproveitamento do momento através da consumação do amor tem um caráter positivo, leva à felicidade, no outro negativo, leva à infelicidade, a dor.
O poema de Ricardo Reis possui maior rebuscamento que o de Catulo, sendo notavelmente perceptíveis as figuras de linguagem (metáfora, eufemismo e comparação). Isso pode ser explicado devido à poesia moderna traduzir as emoções intensas por imagens, diferentemente dos poetas antigos. Assim, Paul Veyne não erra ao dizer que a verdade da arte moderna é "ver mais amplamente, fazer mais fortemente, ir mais longe na beleza e na realidade".


(Jessica Ohana da S.)

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