"Mvsa mihi cavsas memora"

terça-feira, 28 de junho de 2011

Passado e Presente: Comparação Entre a Lírica Latina de Catulo e a Poesia de Drumond.

Poemas
5
Vivamos, minha Lésbia, amemo-nos,
e a todas as censuras de velhos
demasiadamente austeros
demos o valor de um único asse.
Os sóis podem se pôr e retornar;
quando porém numa única vez a breve luz
de nossas vidas desaparece no ocaso,
somos obrigados a dormir uma noite sem fim.
Dá-me mil beijos, depois cem,
a seguir outros mil e mais cem
e depois ininterruptamente outros
mil e mais cem.
A seguir, depois que tivermos trocado
estes muitos milhares de beijos,
alteraremos a soma deles para que
não saibamos quantos foram ou
para que nenhum invejoso possa nos
lançar um mau-olhado quando souber
exatamente o número destes beijos.
Caio Valério Catulo

QUERO
Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.
Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?
Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao não dizer: Eu te amo,
desmentes
apagas
teu amor por mim.
Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,
a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra
e na sua emissão,
amor
saltando da língua nacional,
amor
feito som
vibração espacial.
No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me,
que nunca me amastes antes.
Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não-amor.
Carlos Drumond de Andrade

Observa-se que tanto a poesia de Catulo quanto a de Drumond tratam de amor exagerado. Seja nos milhares de beijos de Catulo e Lésbia até que se perca a conta ou nos muitos “Eu te amo!” de cinco em cinco minutos que Drumond exige da amada, há, em ambos os casos, a exaltação do amor e muita intensidade.
Segundo Paul Veyne, a estética da intensidade nada acrescenta na veracidade do texto. Porém, essa mesma estética da intensidade garante a autenticidade, já que torna o que está sendo dito mais “sincero”. Nas poesias analisadas, a intensidade que se mostra presente, em Catulo sob a forma dos muitos beijos, em Drumond sob a forma dos muitos “Eu te amo”, nos faz acreditar na sinceridade do que está sendo dito pelo poeta, talvez muito mais no caso de Drumond somente pelo fato de conter o “Eu te amo” e não simplesmente beijos.
Veyne diz ainda que essa intensidade pode ser chamada de “isolamento do poeta de seus leitores” e “renúncia à clareza”, pois, para ele, os poetas antigos tinham necessidade de se fazer compreender, o que não os deixava afirmar com tanta intensidade, tornando-os insinceros. Os poetas modernos não têm essa necessidade de se fazer compreender, o que os torna mais intensos e, consequentemente, mais sinceros. De fato, o poema de Drumond é tão intenso que causa a sensação de que não tenha sido escrito para que houvessem leitores e, sim, uma única leitora.
Em seu texto, Veyne aborda ainda a nova estética da paixão: o amor passa a ser apreciado por si mesmo, não mais pelo seu objeto (mulher amada) ou em relação ao sujeito que sente. Como na Grécia, em Roma a paixão não tinha valor ético: a paixão amorosa era concebida em relação ao sujeito que a sente. Por isso, a poesia de Catulo é tida como insincera, pois não é autobiográfica; ele está apenas imitando os ciumentos e representando com seu próprio nome. Na poesia de Drumond, o amor não é concebido em relação ao sujeito que o sente, muito menos em relação à mulher amada, pois, apesar de se dirigir a ela, o que importa para ele não é a “mulher amada” em si, mas o amor que esta, seja quem for, sente por ele.
Sendo ou não verossímil, intensa ou sincera, a poesia lírica-amorosa é de grande agrado até hoje, pois todas as pessoas têm ou já tiveram um amor. Além disso, não existe ninguém que não se identifique com pelo menos uma poesia deste tipo.

(Jéssica de Oliveira da Silva)

2 comentários:

  1. Excelente. O poema de Catulo dialoga com o de Drummond: ambos querem paixão dos seus amantes. Mas é claro, há uma grande diferença - Catulo quer beijos, já Drummond quer ouvir "Eu te amo".

    O trabalho foi bem argumentado, falando da intensidade e da sinceridade, mas algo poderia ser acrescentado. Carlos Drummond de Andrade, diferentemente de Catulo, põe uma nebulosidade na necessidade imensa de amor do Eu-lírico, dando chances há mais de uma interpretação além da ideia geral. O que, como está escrito, não deve acontecer (e não acontece) na poesia de Catulo: a mensagem é clara e direta, não importa como soe.

    Há, também, mais uma diferença entre os poemas que apenas ressaltam e destacam as idéias de Paul Veyne. Talvez por questões complexas acerca do ritmo da poesia latina, a forma do poema de Catulo é simples. A de Drummond possui nuances, isolamento de algumas palavra para maximizar a força de seu impacto (amor/ saltando da língua nacional,/ amor) e, portanto, tem forma importante para a mensagem passada.

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  2. Sua análise foi perfeita entre as duas poesias. O ponto principal, que não encontrei nas outras análises, foi exatamente esse contraste, no seu caso, entre a poesia clássica de Catulo e a moderna de Drummond, que segundo o proposto de Veyne, diz respeito à estética da intensidade. A clareza de Catulo no decorrer do poema se contrapõe aos versos "amor na raiz da palavra / e na sua emissão, / amor / saltando da língua nacional, / amor / feito som / vibração espacial." ou "eu me precipito no caos, / essa coleção de objetos de não-amor." de Drummond. E como você mesmo analisou, segundo essa estética, torna Drummond sincero, autêntico, único, enquanto Catulo não.

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