"Mvsa mihi cavsas memora"

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Matrizes Clássicas - Camila Boroni Silva

Caio Valério Catulo
73
Deixa de querer prestar um favor a alguém,
deixa de crer que alguém possa ser grato.
Só há ingratidões. De nada adianta haver sido prestativo;
isto ao contrário causa mais desgosto e
mais contrariedades como causa a mim,
a quem ninguém nem mais insuportavelmente
nem mais penosamente ameaça do que aquele
que até há pouco me teve como único e
exclusivo amigo.

Augusto dos Anjos
Versos íntimos (1901)

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que afaga,
Escarra nesta boca que te beija.
Os dois poemas comparados tratam basicamente da mesma temática: as relações humanas. Mais especificamente os sentimentos de ingratidão, de traição e de egoísmo. Observando que o outro a quem o sujeito poético se refere não necessariamente é a mulher amada, pode ser qualquer pessoa que se tem algum vínculo. Apesar de abordarem uma mesma temática, os poemas referidos possuem uma estética e estrutura muito diferentes. O poema de Catulo é construído em versos livres, já o poema de Augusto dos Anjos é um soneto clássico: apresenta dois quartetos e dois tercetos.
Comparativamente, o poema de Augusto dos Anjos é muito mais intenso para o leitor “moderno”, por causa das palavras utilizadas no poema, pela violência das imagens (VEYNE) que traz para os olhos de quem lê um efeito estético chocante. Quando um leitor que está acostumado a essa “estética da modernidade”, sempre esperando um poema com violência imagética, com intensidade no jogo das palavras lê este poema de Catulo praticamente não sente o efeito estético, não tem a sensação de estranhamento. Por isso talvez “a poesia antiga nos causa tédio”. Porque o horizonte de expectativa do leitor de hoje não é mais o mesmo horizonte de expectativa do leitor da Roma antiga.
A noção de intensidade é muito nítida nestes dois poemas. O poema de Catulo é pouco profundo. Versos íntimos provoca no leitor pelo menos um choque com o vocabulário utilizado, que geralmente não faz parte do universo poético, a não ser que o autor queira causar um efeito de provocação no leitor. O poema de Augusto dos Anjos é mais radical em questionar as relações humanas.
A “estética moderna da intensidade” parece caminhar cada vez mais para valorizar conceitos complexos que o texto de Paul Veyne levanta: as questões de originalidade; de autenticidade e de verdade que não cabem ser levantadas aqui.
Pela comparação estabelecida é possível elucidar que para o leitor de hoje a estética de um poema como este de Catulo não faz “efeito” como este poema de Augusto dos Anjos, pois a estética é diferente, não é melhor nem pior. Pode ser mais intensa aos olhos de quem lê, mas o que é intenso hoje não o era antigamente. A Literatura é uma arte que representa a sociedade, a sociedade muda, as pessoas mudam, a Literatura muda. O que hoje é moderno amanhã pode não ser mais. E o que hoje é ultrapassado no futuro pode ser moderno de novo.
Bibliografia:
ANJOS, Augusto dos.Eu / outra poesia. São Paulo: Círculo do livro.
Poemas. (texto copiado)VEYNE, Paul. Epílogo: Nosso estilo intenso, ou porque a poesia antiga nos causa tédio. in: A elegia erótica romana. ( texto copiado)

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