"Mvsa mihi cavsas memora"

terça-feira, 28 de junho de 2011

Catulo e Olavo Bilac

A intensidade é uma característica intrínseca às poesias, seja qual for o gênero à que pertencem, e o poeta que as criou. O simples fato de se escolher uma poesia como forma de expressão, e não a prosa, por exemplo, já é abordar o tema de uma maneira mais intensa, recortando e moldando as idéias em estrofes e versos, combinando-as em rimas e efeitos típicos desse estilo de escrita.
Entretanto, tais variações de estilo, e de contexto histórico-social, se refletem na forma, na estrutura, e, claro, nas mensagens e temas expressos nos poemas. A intensidade, que está tão ligada à sinceridade do poeta, nos tempos modernos, pode ser acentuada, mais evidenciada, ou amenizada, mais ambígua, dependendo do poeta e do gênero literário. Variam com o tempo as visões de mundo, e, consequentemente, variam as concepções sobre o que é intenso, sincero, fantasioso. O que parece não variar é o fascínio que as poesias exercem sobre os indivíduos de qualquer sociedade e tempo.

(...). Para nós, um verdadeiro poeta se reconhece por uma certa intensidade que passa por ser a marca própria do lirismo; a poesia que amamos é um álcool forte, e isto é assim há dois séculos. A estética moderna é uma estética de intensidade; (...)”
( VEYNE, Paul. ‘A Elegia Erótica Romântica’. Epílogo: Nosso estilo intenso, ou por que a poesia antiga nos causa tédio. P.267.)


Comparar poesias de duas épocas bem distintas pode render reflexões interessantes, pois o geralmente o primeiro impulso é imaginar que hajam mais diferenças do que semelhanças entre poemas que se originaram de estilos e contextos tão diferentes. Há, sim, muitas distinções, mas há também, inúmeras similaridades, tanto nos temas e conceitos, como nas estruturas dos poemas, no modo e na intensidade com que são expressos.
Analisando temas em comum, estruturações que se assemelham, podemos perceber que muitas expressões artísticas conseguem, de fato, ‘dialogar’ através do tempo e do espaço. Comparando, por exemplo, o poema “Odeio e Amo”, do poeta Catulo, expoente da Poesia Lírica Romana, com o soneto “Dualismo”, do famoso Parnasiano, Olavo Bilac, é possível perceber de imediato o quanto ambos fazem uso da intensidade como efeito, e que a ambigüidade do ser humano foi o tema central nos dois poemas.

ODEIO E AMO

Odeio e amo. Perguntarás como isso possa ser.
Não sei, mas sinto-o, e é um tormento.
é como um vazio devorador
um simples toque de luz encantador
não vejo nada
de tanto
iluminar, abdicar, dar, amar, ofuscar o sublime
com a sua própria face – só a luz.
[ Há noites em que as estrelas mudam
Sorrateiramente de lugar, fazendo desvios
rápidos. Escrevem no céu traços de luz que
só devem ser vistos por uma pessoa
de cada vez.]
Calor que aleija ao andar na ilusão
A luz que ainda não me deixa ver!
é preciso fechar os olhos para criar a pálida alma só
no deserto, caminhando entretida a contar os grãos de areia
impedindo a noite de se fazer negra e fria. “
( Catulo )

DUALISMO

Não és bom, nem és mau, és triste e humano;
Vives ansiando entre maldições e preces;
Como se a arder, no coração tivesses,
O tumulto e o clamor, de um largo oceano;

Pobre, no bem como no mal, padeces;
E rolando num vórtice vesano,
Oscilas entre a crença e o desengano,
Entre esperanças e desinteresses;

Capaz de horrores, e de ações sublimes,
Não ficas das virtudes, satisfeito,
Nem te arrependes, infeliz, dos crimes;

E no perpétuo ideal que te devoras,
Residem juntamente em teu peito,
Um demônio que ruge, e um deus que chora “.
( Olavo Bilac)


Catulo abordou esse lado ambíguo das pessoas de uma maneira mais direta, sucinta, ainda assim expressando o quanto essas incertezas e oscilações o atormentam. Nessa poesia antiga, a ambigüidade é vista da perspectiva do amor e de seus esperados desabores. A experiência de amar, que inspirou o poeta Catulo nesses versos, já é em si um sentimento bem ambíguo, reforçando ainda mais a idéia de contradição revelada na poesia.
Já Olavo Bilac aborda essa ambigüidade com uma combinação de palavras mais impactante, expressando essa dualidade de sentimentos que o homem é capaz contrastando idéias e imagens fortes ao longo de todo o soneto. Apesar de estarem separados por vários séculos, e de partirem de pontos de vista diferentes, nas duas poesias está evidente a inquietude que é estar dividido entre caminhos tão opostos.
Tanto Olavo Bilac como Catulo, usam elementos da natureza como metáforas para o processo interno que confunde tanto o ser humano. Bilac diz : “...como se a arder, no coração tivesses, o tumulto e o clamor, de um largo oceano,...” . Além de intensa é uma imagem que pode representar bem um homem dividido entre decisões difíceis, ou mesmo conflitado pelos ciclos da vida. Catulo já usa as estrelas para representar esse conflito interno, seja pelo amor, ou por outra dor : “... [ Há noites em que as estrelas mudam sorrateiramente de lugar, fazendo desvios rápidos. ...]”. Parece falar do homem, quando faz o que não deve, mesmo sabendo, já que as estrelas não poderiam mudar assim de lugar, pois deveriam estar sempre em uma posição esperada. O uso de vocabulários contrastantes, em ambas as obras, também acentuam e explicitam ainda mais essa ambigüidade, como luz x negra, devorador x encantador, sublime x tormento, iluminar x ofuscar, bom x mau, crenças x desinteresses, horrores x virtudes, infeliz x satisfeito, demônio x deus.
Ambos os poetas abordam o tema com intensidade, seja pelo jogo de palavras e imagens, ou pela forma, pontuação (Catulo não utiliza ponto e vírgula nos lugares esperados) e estrutura. Nos dois casos essa intensidade pode sim ser associada com sinceridade, por causar um efeito de identificação no leitor. Tanto na História da humanidade, como na vida de um indivíduo, a presença de altos e baixos é uma constante. Inevitável, por ser da ordem da natureza, da Terra, e do humano. Ciclos que nos movem e nos presenteiam, nos perseguem e assombram. Vida que nos acontece e nos divide.


                                 ( FERNANDA DIAS DE SÁ LEITÃO)

Um comentário:

  1. O que podemos notar na comparação feita entre Catulo e Bilac é que a ambiguidade continua sendo uma das mais fortes características do ser humano, em qualquer época. Todos somos capazes de ser "mais de uma coisa ao mesmo tempo", ou de sentimentos que se opõem completamente - especialmente quando se fala de amor. Shakespeare resumiu muito bem tal dualismo na fala de Julieta: "meu único amor, nascido de meu maior ódio."
    Catulo e Olavo Bilac demonstram de maneira precisa a angústia, a impotência de quem se vê dividido sobre o que fazer diante de uma situação onde haja sentimentos conflitantes. Bilac faz a síntese perfeita: "Não és bom, nem és mau, és triste e humano/ Vives ansiando entre maldições e preces/
    Como se a arder, no coração tivesses, o tumulto e o clamor, de um largo oceano."
    Já a abordagem de Catulo dão a impressão de curiosidade, ou do quanto o sujeito poético impressiona-se diante da disparidade entre o amor e o ódio, e de como é possível senti-los simultaneamente. "Odeio e amo. (...) Não sei, mas sinto-o, (...) é como um vazio devorador/ um simples toque de luz encantador (...)"

    (Sarah Oliveira)

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