"Mvsa mihi cavsas memora"

segunda-feira, 27 de junho de 2011

ESTUDO COMPARATIVO: LÍRICA ROMANA
 
 
 
ODES- Primeiro livro
 
         (Quinto Horacio Flaco)
 
 
                            5
 
    Quem é, ó Pyrrrha. o jovem tão garboso
    que, de fragrâncias  fluidas  banhado,
    te enlaça, ó Pyrrha, numa doce gruta,
        sobre um leite de rosas?
 
   Para quem tu, singela nos adornos,
   a loira cabeleira recompões?
   Ai! Vezes quantas há de lamentar
       a lealdade a ti,
 
 
  os  Deuses sem constância e, pouco afeito,
  há de ver com assombro os mares crespos
  das negras ventanias, aquele que
      te goza agora, ingênuo
 
 ilibada qual ouro, aquele que
 néscio ainda das brisas da perfídia,
 sempre isenta te crê de outros amores,
    sempre digna de amor!...
 
 Como infelizes são os que deslumbras
 porque jamais puderam te provar!
 A parede do templo está mostrando,
    por um painel votivo,
 
 
que eu ali pendurei, oferta grata
 ao poderoso Deus de nossos mares,
 as vestimentas úmidas ainda
    de meu triste naufrágio...
 
 
 
CANÇÃO
 
 
 
LOUCURA PASSAGEIRA
 
 
Gravada por José Augusto em 1989
 
 
Composição: José Augusto e Paulo Sérgio Valle
 
Amor quando é demais machuca, tira a paz
Mas é amor
Palavras sensuais às vezes são banais
Mas é amor
Ciúme, traição encontram no paixão
A mesma dor
É por isso
Que eu não vou embora
Meu amor fala mais forte nessa hora
Não sei me dividir, não sei pra onde ir
Sem ter você
Não quero a solidão no corpo e no coração
A me prender
Você é uma paixão, mas gosto de ficar
Preso em você
Eu sou como o brilho das estrelas
Que precisam do escuro pra viver
E o meu coração não se cansa
De amor desse jeito
O amor é tão grande
Que explode no peito
Se é certo ou errado
Eu não posso julgar
Inútil a gente querer
O que a alma rejeita
Meus olhos são surdos
Você é perfeita
Melhor viver juntos
Prá que separar
 
 
Se acaba em vendavais
Explode em temporais
Mas é amor
São novas ilusões
Eternas traições
E trazem dor
Você é mesmo assim
Mas sei que vou te amar
Pra vida inteira
Você foi a loucura passageira
Que virou eternidade de paixão
 
 
Tanto o poema de Horacio quanto a canção de José Augusto e Paulo Sergio Valle retratam o mesmo tema: a traição sofrida pelo eu-lírico feita pela mulher amada. E ambas as obras mostram o eu-lírico dirigindo-se igualmente ao objeto de sua paixão.
Porém, notam-se as diferenças quando se observa o posicionamento do eu-lírico em relação à leviandade sofrida. Horacio é bastante comedido ao descrever as reações do eu-lírico, o qual tenta descobrir a identidade do amante da esposa, indagando sutilmente a mesma e deixando claro que está ciente da situação, o que fica claro nos seguintes versos:
 
      Quem é, ó Pyrrrha. o jovem tão garboso
    que, de fragrâncias  fluidas  banhado,
    te enlaça, ó Pyrrha, numa doce gruta,
        sobre um leite de rosas?
 
   Para quem tu, singela nos adornos,
   a loira cabeleira recompões?
 
 
J. Augusto e P.S. Valle, ao contrário, retratam o eu-lírico de forma passional admitindo o comportamento leviano da companheira e mostrando sua incapacidade de reverter essa situação e aceitando passivamente o fato. Isso pode ser comprovado nos versos abaixo:
 
Inútil a gente querer
O que a alma rejeita
Meus olhos são surdos
Você é perfeita
Melhor viver juntos
Prá que separar
 
 
  E também nos seguintes versos:
 
 
São novas ilusões
Eternas traições
E trazem dor
Você é mesmo assim
Mas sei que vou te amar
Pra vida inteira
 
 
 Para se entender essa diferença crucial entre a lírica romana e a poesia moderna(no caso, uma canção contemporânea da MPB), basta lembrar o estudo feito por Paul Veyne no artigo "Epílogo: nosso estilo intenso, ou por que a poesia antiga nos causa tédio". Esse autor explica que a poesia moderna, desde os tempos de Rousseau e Gustave Doré, está impregnada da "estética da intensidade". Estamos acostumados a valorizar aquilo que é intenso em detrimento do que nos parece superficial e insípido. Essa estética é muito bem exemplificada por Veyne nas páginas 269-270 desse artigo:
 
  "A intensidade como garantia de autencidade dizer ""a púrpura das charnecas"", ao invés de falar de charnecas purpuradas, não é acrescentar nada à verdade, já que é dizer a mesma coisa, mas é intensificar, e, através disso, provar sua sinceridade,..."
 
Como se vê, é tudo uma questão de estilo e técnica. Para impressionar o leitor(no caso, o ouvinte) ou autores da canção brasileira utilizam fortes imagens associativas, conforme observamos nos versos:
 
 
Você é uma paixão, mas gosto de ficar
Preso em você
Eu sou como o brilho das estrelas
Que precisam do escuro pra viver...
 
 
E nesses outros:
 
 
Se acaba em vendavais
Explode em temporais
Mas é amor...
 
 
Esse recurso comprova as palavras de Paul Veyne, ao definir a arte e lliteratura modernas nas páginas 271 e 272 do citado artigo:
 
   "Tal é, pois, a tr´plice verdade da arte e da literatura modernas: ver mais amplamente, fazer mais fortemente, ir mais longe na beleza e na realidade."
 
 
A poesia moderna foca e prioriza o sentimento, a paixão, que é uma experiência que deve ser vivida pelo seu valor intrínseco. Nos tempos medievais de Dante e Petrarca o foco estava no objeto da paixão, na mulher amada que era endeusada e muito respeitada. Paul Veyne explica em detalhes essa temática nas páginas 275 e 276 do artigo referido.
 
Contudo, na Grécia e em Roma a paixão era mal-vista, o homem que revelava seu sofrimento diante das dores do amor era considerado um fraco. Assim, as poesias de Horacio, Catulo, Tibulo e outros devem ser entendidas como obras ficcionais, as mulheres a quem eram dirigidas tais poemas provavelmente nunca existiram, foram criacões literários destes poetas( para cumprir seu objetivo: entreter os leitores e ouvintes. Decantar as dores da paixão e da traição era uma diversão para os cidadãos romanos da época.
 
 
Portanto, fica fácil entender como o mesmo tema pôde ser abordado de formas tão distintas em dois momentos sociais e históricos: a antiguidade greco-romana e a modernidade.
 
Para concluir, observe-se como Horacio e J.Augusto/P.S. Valle retratam de forma diferente a reação do eu-lírico ao se relacionar com a mulher amada, apesar de saber da traição recente:
  
 
  Horacio:
 
 ...Ai! Vezes quantas há de lamentar
       a lealdade a ti,
 
 
  os  Deuses sem constância e, pouco afeito,
  há de ver com assombro os mares crespos
  das negras ventanias, aquele que
      te goza agora, ingênuo
 
 ilibada qual ouro, aquele que
 néscio ainda das brisas da perfídia,
 sempre isenta te crê de outros amores,
    sempre digna de amor!...
 
 
 
 ...as vestimentas úmidas ainda
    de meu triste naufrágio...
 
 
 
J. Augusto/P.S. Valle:
 
 
 
Ciúme, traição encontram no paixão
A mesma dor
É por isso
Que eu não vou embora
Meu amor fala mais forte nessa hora...
 
 
 
Você foi a loucura passageira
Que virou eternidade de paixão
 
 
 
Horacio descreve o eu-lírico reagindo de forma serena e até bem-humorada, enquanto os compositores brasileiros enfatizam a intensidade do sofrimento e do desespero do eu-lírico ao aceitar e reconhecer o caráter leviano permanente da mulher amada, abrindo mão de reverter essa situação e acomodando-se a ela.
 
 
A intensidade das fortes imagens e comparações impressionam nossa sensibilidade, fazendo com que o leitor moderno apprecie tanto essa estética atual e se deixe estranhar e até se entendiar com a lírica romana, que propunha o virtuosismo técnico no lugar da exaltação dos sentimentos.
 
 
 
Trabalho feito pelos alunos
 
Abrahão David e Alberto
 
 

3 comentários:

  1. Parabéns Abrahão e alberto! Vocês fizeram uma excelente análise entre a estética antiga e a moderna na poesia. Vocês relacionaram muito bem, pois não menospresaram e nem exaltaram nenhuma das duas apena comentaram sobre o que é valorizado e vigente em cada época especilmente na escrita.

    Análise feita por Damiana Barci.

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  2. Maria Letícia Felintro2 de julho de 2011 às 05:48

    Parabéns! Vocês fizeram uma análise bem consistente com a teoria de Veyne no sentido em que ele explicita a questão de que os poetas antigos seriam verdadeiros porque têm pouca intensidade, já os modernos são intensos por isso são verdadeiros. Vocês deram ênfase justamente na questão da valorização das duas estéticas e discorreram sobre a exposição dos sentimentos que depende em grande parte da questão social vigente. "ANALISE DE MARIA LETICIA FELINTRO".

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  3. Maria Leticia Felintro.2 de julho de 2011 às 09:47

    Parabéns para vocês pela análise feita.Vocês enfatizaram muito bem a estética da intensidade nos poemas modernos, não menospresando a maneira menos profunda das poetas antigos de demonstrarem seus sentimentos. É apenas uma questão de expor os sentimentos de maneira diferente em cada época o que envolve também os aspéctos sociais pertinentes em cada período da humanidade. Os antigos seriam verdadeiros pois têm pouca intensidade, já os modernos são intensos por isso são verdadeiros. Vocês deixam esses fatores bem visíveis na análise dos poemas. É como a teoria de Veyne que deixa claro que os poetas modernos utilizam-se da intensidade como garantia de autenticidade.
    (comentário feito por Maria Leticia Felintro)

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