"Mvsa mihi cavsas memora"

domingo, 19 de junho de 2011

Meireles e Catulo – Resistência e Resignação

                           8

Meu pobre Catulo, põe um termo neste delirar
E considera perdido o que vês que se perdeu.
Em tempos passados sóis luminosos brilharam
Quando tu, constantemente, corrias
Para onde te chamava a jovem por nós tão amada
Quanto nenhuma outra será jamais amada.
Nestes encontros então aconteciam aqueles
Inumeráveis momentos de prazer: o que tu querias
A jovem também não o deixava de querer.
Sóis luminosos realmente brilharam para ti.
Hoje, porém, ela já não te quer mais.
Também tu, incapaz de te conteres, não queiras mais,
Não persigas aquela que te foge, não vivas infeliz,
Mas conserva inflexível teu espírito, resiste.
Adeus, minha jovem amiga, Catulo já resiste,
Não mais irá te procurar, não mais te convidará
A um encontro, se não o desejares.
Mas tu chorarás quando não mais fores solicitada.
Ai de ti, infeliz. Que vida te está reservada?
Que homem irá ter contigo?
A quem parecerás bela? Agora a quem amarás?
A quem dirão que pertences? A quem beijarás?
De quem morderás os lábios?
Mas tu, Catulo, resiste.

(1 – 20 Catulo)


Canteiros
(Música do Fagner baseada na obra de Cecília Meireles)
Quando penso em você fecho os olhos de saudade
Tenho tido muita coisa, menos a felicidade
Correm os meus dedos longos em versos tristes que invento
Nem aquilo a que me entrego já me traz contentamento
Pode ser até manhã, cedo claro feito dia
mas nada do que me dizem me faz sentir alegria
Eu só queria ter no mato um gosto de framboesa
Para correr entre os canteiros e esconder minha tristeza
Que eu ainda sou bem moço para tanta tristeza
E deixemos de coisa, cuidemos da vida,
Pois se não chega a morte ou coisa parecida
E nos arrasta moço, sem ter visto a vida.

No poema de Catulo o eu lírico passa por crises sentimentais ao perceber que sua amada deixara de lhe corresponder ao seu amor. Ao sentir-se desprezado pela moça que era a fonte de sua alegria, o solitário, num primeiro momento, tenta resgatar este amor. Ao ver que não chegaria à solução, o eu lírico tenta resistir à inflexibilidade que o arrasta para momentos de melancolia quando percebe que aquela a quem amara não merecia tamanho valor. Já na música de Fagner baseada no poema Canteiros de Cecília Meireles, o eu lírico tem plena consciência do amor que foi perdido e, por si só, conforma-se com a perda não deixando que a tristeza o domine e o impeça de seguir a vida, apesar da saudade que o cerca.
Percebe-se, portanto, que as duas obras se referem ao mesmo sentimento de perda que os leva à saudade e tristeza. Porém, enquanto um sobrevive, resistindo,

Adeus, minha jovem amiga, Catulo já resiste,”
(8, Catulo - verso 15)

o outro vive, resignado.

E deixemos de coisa, cuidemos da vida,
Pois se não chega a morte ou coisa parecida
E nos arrasta moço, sem ter visto a vida.”
(Canteiros, versos 10 – 12)



No poema moderno, Canteiros, a intensidade das emoções é explicitada através da ostentação de imagens, observada nos versos 7 e 8 da canção,
Eu só queria ter no mato um gosto de framboesa
Para correr entre os
canteiros e esconder minha tristeza”

que garante a veracidade dos sentimentos, indo de encontro à proposta moderna de poesia. Esta proposta não se preocupa em garantir que o leitor obtenha o entendimento daquilo que se está lendo, pois não são mais palavras que se lêem, e sim sentimentos que se sentem. As palavras mostram a emoção, não insiste sobre a idéia do poeta.
A emoção profunda é a emoção nua, sem notas explicativas.” (VEYNE, Paul.)

Na poesia antiga, sempre se havia falado de paixão, mas sem o aprofundamento da intensidade desse sentimento, pois o amor era apreciado pelo seu objeto, que era a pessoa amada, ou pela relação do sujeito que o experimenta, como se pode observar no verso 13 no poema 8 de Catulo esta valorização extrema ao objeto:

Não persigas aquela que te foge, não vivas infeliz,”


Conclui-se, portanto, que a visão do mesmo sentimento é interpretada de maneira subjetiva por cada um dos autores, como se constata nas obras analisadas que, para Cecília, a escolha de continuar a viver supera a repressão que a saudade e a tristeza tenta impor ao eu lírico, mas, para Catulo, viver a supremacia de tais sentimentos é o que predomina. À intensidade, existente ou não, é que se pode atribuir a autenticidade das obras aqui analisadas.

                                                           
                                (Cláudia Carneiro e Flávia Pais)

2 comentários:

  1. Muito interessante o jogo de palavras usado nas duas poesias, pois é justamente a combinação entre elas que permite que tais imagens sejam vistas. Quando o eu lírico, na música, diz : “Eu só queria ter no mato um gosto de framboesa
    Para correr entre os canteiros e esconder minha tristeza” ; me causou a mesma impressão, que a intenção não era passar somente as imagens desses elementos, literalmente, mas sim, causar sensações, como se a intenção da combinação dessas palavras ali fosse passar os sentimentos. Até porque o cheiro e o gosto das coisas estão intrinsicamente ligados à memória, e por estar em uma poesia esse aspecto fica ainda mais evidenciado.
    Da mesma maneira que a poesia de Catulo traz adjetivos fortes, como 'infeliz', 'incapaz', 'perdido´, ínflexível' , que juntos dão um ar de maior gravidade. Os verbos escolhidos também causam impacto, pois criam uma atmosfera mais pesada, de dor, como 'delirar', 'chorará', 'resiste','persigas',intensificando ao longo dos versos a dor de ver e saber que seu amor não volta mais.
    Perder qualquer coisa já é ruim, quedirá um amor, o que torna a poesia de Catulo atemporal, e fácil de nos identificarmos com o tema.
    FERNANDA DIAS DE SÁ LEITÃO

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  2. Concordo com a Fernanda!
    O uso das duas palavras em questão ( resignação e resistência) é o que gera a dicotomia e o contraste dos poemas utilizados;
    Cada autor se utiliza da intensidade dos sentimentos e é possível perceber como se sujeitam à aceitação do sofrimento.
    A escolha da música reflete a estética da intensidade de maneira híbrida, unindo a doçura de Cecília à subordinação ao sentimento do eu-lírico exposto pelo cantor Fagner. Enquanto Catulo transmite de forma singular e objetiva o sentimentalismo resignado do seu personagem que reflete no próprio autor.

    Andrea Pacheco de Mello.

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