"Mvsa mihi cavsas memora"

quarta-feira, 29 de junho de 2011



Odeio e amo. Talvez queiras saber "como?"

Não sei. Só sei que sinto e crucifico-me.


(Catulo)
Catulo é direto e incisivo: sabe sua dúvida e não sabe por que. E ele crucifica esse amor que de repente surge na pessoa a que devia odiar ou ao ódio que surge na pessoa que devia amar. Bastam-lhe duas pequenas frases e está feito - uma dúvida sem resposta, mas com motivo (amor e ódio) e consequência (autocrucificação).




Olhos nos olhos
Quando você me deixou, meu bem,
Me disse pra ser feliz e passar bem.
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci,
Mas depois, como era de costume, obedeci.
Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer.
Olhos nos olhos,
Quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais
E que venho até remoçando,
Me pego cantando, sem mais, nem por quê.
Tantas águas rolaram,
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você.
Quando talvez precisar de mim,
Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim.
Olhos nos olhos,
Quero ver o que você diz.
Quero ver como suporta me ver tão feliz.

(Chico Buarque)

Em "Olhos nos olhos", Chico Buarque encarna uma mulher. Ela já não tem mais nada com a outra personagem envolvida e no entanto, vive os mesmo sentimentos de Catulo. A diferença é a subjetividade lírica das mudanças súbitas de discurso. Ela está sempre pronta para recebê-lo de volta - quando quiser me rever ou precisar de mim... -, não só parece, como deseja que isso aconteça. Mas quando o encontra, ela tenta se mostrar superior a ele diante do término, diante da vida. Ela não vê motivo para querê-lo e ainda assim lembra-se de tudo que ele fez para ela - "ao sentir que sem você eu passo bem demais"; "Quantos homens me amaram/ Bem mais e melhor que você." Isto é, ela já teve outros e ainda não conseguiu seguir em frente. Ao mesmo tempo, não é capaz de voltar atrás: não vê sentido em voltar com a outra personagem, apesar de querer e dizer isso o tempo todo. São as vivências de Catulo: ela ama e odeia alguém, há uma dúvida sem resposta e isso faz com que ela fique remoendo essa confusão - quando diz que quer que a outra personagem tente suportar a felicidade dela, não tem felicidade e quando pensa que de fato passa bem sem ele, também não é feliz, mas tenta aparentar isso para si mesma.
As diferenças de estilo são fáceis de notar. A poesia de Chico Buarque busca, de fato, os conceitos apresentados por Paul Veyne: a visão do cantor é mais ampla que as palavras diretas de Catulo, evocam imagens de forma mais forte e parece mais ambicioso no que tange ao reconhecimento do leitor. Desta forma, Chico Buarque estaria mais próximo da essência da arte e os versos de Catulo apenas mais longe na profundeza do real.
A grande diferença está nas imagens. A poesia de Catulo é intensa como classicista - seu jogo de palavras é abstrato e, no entanto, atinge o leitor de todas as épocas. O efeito de intensidade fica muito mais claro com as imagens sustentadas por Chico Buarque, sem dizer o que diz Catulo de forma explícita, as ideias são as mesmas ou semelhantes.

                                                      (Danilo Santos Crespo)

3 comentários:

  1. Gostei muito da escolha dos poemas. Dialogam bem, pois podemos observar que Catulo diz o que pensa e sente, sem tentar se explicar demais, apenas informando que não sabe como sente, no entanto, crucifica-se por tal sentimento.
    Quanto ao eu lírico de Chico Buarque, podemos constatar que este tenta, a todo momento, se convencer de que não mais se interessa pelo outro, ao dizer tantas vezes a esse outro que está bem melhor e mais feliz. Tais afirmativas demonstram ainda insegurança do eu lírico quanto ao que sente e pensa, visto que deixa claro que, quando o outro quiser voltar, ela o estará esperando.
    Paul Veyne articula bastante com as temáticas retratadas nos poemas ao tratar da intensidade como garantia de autenticidade, bem relacionada à emoção intensa e da busca de ostentação de imagens. Também percebemos que, em resumo, ambos os poetas abordam sobre seus sentimentos ainda existentes, seja para o bem, seja para o mal de cada eu lírico.

    (Elisa Bragança)

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  2. A escolha da obra de Chico Buarque para dialogar com a de Catulo foi bastante apropriada, as obras coincidem muito no contraditório e turbulento posicionamento no amor e na situação vivida do eu-lírico.
    Seu texto foi bem escrito e está coerente com algumas das idéias de Paul Veyne que têm a ver com a música escolhida. Mas, mesmo assim, senti falta de um maior aprofundamento teórico. Você analisou bastante -e muito bem- a obra de Buarque, falou brevemente sobre a de Catulo e depois escreveu o embasamento teórico. Nessa parte esperava um maior desenvolvimento sobre os aspectos que Veyne fala em "Epílogo" e você aborda no trabalho.
    Entretanto sua análise foi muito boa e clara. Vale a pena ser lida.


    (Isabelly Costa)

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  3. Considero que a comparação foi muito bem analisada, sobretudo no aspecto crucial da questão que é o ressentimento oculto e o sutil desejo de vingança do eu-lírico da canção do Chico Buarque. Enquanto Catulo apresenta-se bastante comedido e autêntico na exposição de seus sentimentos, na canção do Chico o eu-lírioco demonstra na verdade esperar o retorno de seu antigo amor para espezinhá-lo por vingança, embora talvez até o aceite. Os versos abaixo são claros para confirmar esse fato:

    "Quando talvez precisar de mim,
    Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim.
    Olhos nos olhos,
    Quero ver o que você diz.
    Quero ver como suporta me ver tão feliz."

    Como bem disse o Danilo, essa intensidade e também ambiguidade que confundem e forçam a reflexão são típicoas da poesia moderna, como destacou Paul Veyne.


    ASS: ALBERTO

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