"Mvsa mihi cavsas memora"

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Ovídio x T. S. Eliot
A estética da identidade nos séculos de lirismo

Ovídio

Trecho do Livro I (168-176) - Metamorfoses.

Est uia sublimis caelo manifesta sereno:
Lactea nomen habet, candore notabilis ipso.
Hac iter est superis ad magni tecta Tonantis
Regalemque domum. Dextra laeuaque deorum
Atria nobilium ualuis celebrantur apertis;
Plebs habitat diuersa locis, a fronte potentes
Caelicolae clarique suos posuere penates.
Hic lócus est, quem, si uerbis audácia detur,
Haud temeam magni dixisse Palatia caeli.

Existe em céu sereno uma sublime via:
Láctea chamada, de brancura bem notável.
Por lá os deuses vão até a casa real
do grão Tonante. À destra e à esquerda, os átrios
dos nobres deuses são, de porta aberta, honrados.
Outros locais a plebe habita; à frente ilustres
deuses potentes seus palácios dispuseram.
Este lugar, se me permitem a expressão,
ousaria chamar Palatino celeste.



Observa-se que Ovídio introduz aos leitores o mundo dos deuses celestiais, começa por aproximar esse mundo do deles, a ponto de torná-lo idêntico a Roma de todos os dias, nos seus aspectos urbanos, na sua divisão em classe sociais, nos seus costumes, na sua religião. O contato entre deuses e seres humanos é apenas um caso particular entre todas as figuras e formas existentes. O que Ovídio quer mostrar nesse trecho é uma espécie de tradução das realidades celestes para a linguagem dos homens, os reais destinatários da mensagem poética.




T.S. Eliot

Prelúdios

I

A tarde de inverno declina
Com ranço de bifes nas galerias.
Seis horas.
O fim carbonizado de nevoentos dias.
E agora um convulso aguaceiro enrola
Os encardidos restos
De folhas secas ao redor de nossos pés
E jornais que circulam no vazio
Dos terrenos baldios.
O temporal chicoteia
As persianas rachadas e o capuz das chaminés
E na esquina de uma rua
Um solitário cavalo de coche
Bafeja e escarva o solo. E então

As lâmpadas dardejam seu clarão.



 Eliot quer retratar o isolamento de um indivíduo da sociedade. O tema central do poema é sobre o sentimento de desespero com o declínio e dissolução da civilização moderna. Neste poema, Eliot descreve a cidade moderna como um vazio de significado e usa imagens para intensificar esse sentimento. Houve um questionamento dos valores da civilização ocidental moderna, onde esta tinha perdido seu senso de significado e direção. 

Paul Veyne diz que a intensidade está para além de “estilos” no sentido corrente da palavra. E que há séculos essa intensidade vem sendo percebida em diferentes poetas, no que ele chama de Revolução Estética. Onde uma emoção intensa é relacionada à ostentação de imagens, que garante mais veracidade ao poema. Veracidade essa mais sincera nos poetas modernos que nos latinos. Então, segundo as teorias de Veyne, podemos perceber que as primeiras linhas do poema Prelúdios,de T.S. Eliot, sugerem um sentimento de declínio e desespero. As imagens ajudam a conseguir esse efeito com o uso de "inverno" de imagens. O inverno é geralmente associado a uma falta de crescimento e uma perda de vitalidade.O poema sugere que a cidade moderna está em um estado de "inverno" e perdeu sua direção e vivacidade. Eliot constrói sobre esta imagem para sugerir uma explicação do moderno estado de corrupção da sociedade mental. No trecho:
A tarde de inverno declina
Com ranço de bifes nas galerias.
Seis horas.
O fim carbonizado de nevoentos dias.”


a imagem de "cheiro de bifes" pinta um quadro de um ambiente poluído e mundano, e a quarta linha enfatiza esse sentimento de perda de vitalidade e sujeira urbana. O poeta cuidadosamente usa pares de imagens de corrupção com imagens que costumamos associar com a configuração urbana moderna, como bifes e cigarros. O mesmo efeito de associação e sentimento de vitalidade ocorre nos quatro primeiros versos de Ovídio:
Existe em céu sereno uma sublime via:
Láctea chamada, de brancura bem notável.
Por lá os deuses vão até a casa real
do grão Tonante”

onde a imagem de “perfeição sublime” mostra um ambiente sereno, angelical, mas ao mesmo tempo mostra o poder supremo. Ovídio associa a submissão dos deuses ao seu governante, o “grão Tonante” à sociedade dos humanos, que respeitam e obedecem ao seu governo.

Em: “Os encardidos restos
De folhas secas ao redor de nossos pés”

O ponto é novamente enfatizado com outra imagem de decadência e impureza. Onde "folhas secas" aponta para o motivo do inverno e pinta uma imagem clara da morte e declínio. Eliot coloca essas imagens comuns em uma situação que sugere uma crítica ao mundo moderno e estilo de vida. E novamente podemos ver semelhança com Ovídio, onde o trecho que diz:
Outros locais a plebe habita; à frente ilustres
deuses potentes seus palácios dispuseram.”


Também faz uma critica ao mundo moderno e o estilo de vida da sociedade, a clara diferença entre classes sociais. Ambos os poetas possuem a mesma perspectiva de enfatizar os problemas da sociedade, principalmente da sua forma de governo. Essa característica é o que Paul Veyne caracteriza como garantia de autenticidade, onde o poeta é sincero e não manipulador. Porém podemos perceber a clara diferença entre Ovídio e T.S. Eliot, onde o primeiro ao comparar o mundo dos deuses ao mundo real dos humanos, faz isso de forma amena, com eufemismo, e seria preciso saber como vivia a civilização romana da época (seus costumes) para entender melhor o efeito de comparação. Principalmente no original em latim, que enfatiza mais isso. Já Eliot é mais espontâneo, se utiliza da raiva, do desprezo, da melancolia para retratar essa realidade da sociedade.



(Sherazade Madeira )

Um comentário:

  1. Submetendo -se aos deuses, Ovídio faz uma analogia com o supremo e o sublime, enquanto Eliot vai tocando as cordas da modernidade. Ovídio foi um poeta da era de Augusto, e fica claro suas alusões ao poder de Júlio César. Ele enaltece os deuses para elogiar o império, já Eliot dança com os horrores negros que bailam acordes dementes de Poe - a modernidade, a guerra e a sua morbidez. Os dois poetas fazem alusão à sociedade de sua época, um mais ameno, outro mais intranquilo, porém, Eliot tem todas as regalias da modernidade, da estética da intensidade e da fúria dos sentimentos permitidos, graças à modernidade.

    (Luiz Jorge Soares Guimarães)

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