"Mvsa mihi cavsas memora"

terça-feira, 28 de junho de 2011

Poema de Caio Valério Catulo:

Salve, ó jovem, que não tens um nariz muito pequeno
nem uns lindos pés, nem uns negros olhinhos,
nem uns dedos afinalados, nem uma boca delicada,
nem sequer uma linguagem bem aprimorada,
ó amiga do falido de Fórmias.
será que a província afirma que tu és bela?
contigo a nossa Lésbia é comparada?
ó geração de mau gosto e grossa.


Poema de Arthur Rimbaud:
Vénus Anadyomène
Comme d'un cercueil vert en fer blanc, une tête
De femme à cheveux bruns fortement pommadés
D'une vieille baignoire émerge, lente et bête,
Avec des déficits assez mal ravaudés ;

Puis le col gras et gris, les larges omoplates
Qui saillent ; le dos court qui rentre et qui ressort ;
Puis les rondeurs des reins semblent prendre l'essor ;
La graisse sous la peau paraît en feuilles plates ;

L'échine est un peu rouge, et le tout sent un goût
Horrible étrangement ; on remarque surtout
Des singularités qu'il faut voir à la loupe...

Les reins portent deux mots gravés: Clara Venus ;
Et tout ce corps remue et tend sa large croupe
Belle hideusement d'un ulcère à l'anus.



Vênus anadiómena* (Tradução de Daniel Fresnot)

Como de um caixão verde de lata, uma cabeça
De mulher de cabelos morenos e muito pomada
De uma velha banheira emerge, lenta e avessa,
Com seus déficits mal refeitos de uma garibada;

Vem depois o pescoço gordo e cinza, as largas omoplatas
Que sobressaem, as costas curtas que entram e saem;
E as redondezas dos rins querem saltar mas caem;
A gordura sob a pele aparece em folhas chatas;

A coluna é um pouco vermelha, e o todo tem um gosto
Horrível estranhamente; repara-se sobreposto
Algo singular que é preciso enxergar com lupa...

Os rins levam dois nomes gravados: CLARA VÊNUS;
- E este corpo todo mexe sua larga garupa
Bela horrendamente de uma chaga no ânus.

*que saiu da água.



Devemos analisar os poemas de Catulo e Arthur Rimbaud através do viés “como o poeta vê o objeto poetizado e como esse é visto pelos outros”. Tanto no poema de Catulo quanto de Rimbaud, há a presença da desmistificação/desfiguramento do personagem através da enunciação de palavras pobres, ofensoras e até mesmo violentamente fortes (no caso de Rimbaud, apontamos o ápice na úlcera da prostituta no último verso).
Em Catulo, as qualidades da personagem que supostamente lhe teriam atribuído são desmitificadas através dos versos interrogativos
(...)Será que a província afirma que tu és bela?
Contigo a nossa Lésbia é comparada? (...)
enquanto no poema de Rimbaud, percebemos a desfiguramento da prostituta - que é comparada ao inverso da deusa Vênus - por exemplo, nos versos
(...) A coluna é uma pouco vermelha, e o todo tem um gosto
Horrível estranhamente (...)
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Mas as semelhanças cessam quanto ao conteúdo temático. A forma de expressão é o que os diferenciam.
Segundo os conceitos propostos por Paul Veyne no texto teórico “epílogo: Nosso estilo intenso, ou por que a poesia antiga nos causa tédio”, podemos comparar que, em Catulo, nota-se a predominância da narração em 1ª pessoa através de uma focalização interna do narrador produzindo certa interlocução com o leitor (e nos versos interrogativos com o próprio objeto) sob forma de “diálogo”; e tendo em mente que esse texto teórico trata da exposição da estética modernista e, portanto ao que nos interessa, é de necessário analisar em Rimbaud, que a ostentação de imagens e a presença da 3ª pessoa emanam a sensação que o autor não está propriamente interessado em passar algo a um suposto leitor, mas somente exprimir seus sentimentos de repugnância e impressões a esmo, ou talvez estivesse se comportando como quem não espera ser ouvido por alguém, relacionando, dessa forma, o poema à pragmática da sinceridade do próprio Veyne, que diz respeito ao isolamento autor-leitor e à renúncia da clareza, como exemplo desse último, em
(...) com seus déficits mal refeitos de uma garibada (...)
ou
(...) A gordura sobre a pele aparece em folhas chatas (...)
É a ética da paixão dos modernos (VEYNE, p.270) traduzindo em palavras o amor do autor por si mesmo.
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Deduzimos também que, segundo os conceitos referentes à estética da intensidade de Veyne, associa-se o poema “Vênus anadiómena” à autenticidade proposta por ele em seus conceitos, pois percebemos claramente na forma de descrever a prostituta que levanta da banheira de costas que há a escolha pela profundidade e intensidade, desaguando, consequentemente na autenticidade e unidade da obra, que torna o poema diferente de qualquer outro já feito; mais incrivelmente ainda, pois se trata da inversão de uma imagem em comparação, a Vênus. Rimbaud consegue, portanto, através de suas palavras intensas, ser autêntico e sincero dando forma à tríplice aliança da arte e da literatura moderna (p. 271-272), que consiste em ver mais amplamente, fazer mais fortemente e ir mais longe.
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Desse modo, o poema de Rimbaud se diferencia de Catulo em questões propriamente teóricas.  E ao inferirmos que ambos os textos propõem a mesma temática, acreditamos, portanto, que nossos prazeres e visões de mundo nos afastam do imaginário latino clássico somente no que diz respeito ao tempo.

                                             (Thiago Lobo Pereira)

Um comentário:

  1. A leitura do poema de Catulo me fez observar o uso da sutileza com a qual ele descreve a feiura e a ausência de linguagem aprimorada da jovem, explicitando de forma delicada, defeitos fisionômicos que são um paradoxo em relação a uma perfeição idealizada da sua Lésbia. Dizendo que a jovem não tem um nariz muito pequeno, ele afirma que o nariz da Lésbia era pequeno; destacando a pouca beleza dos pés, põe em evidência os pés da Lésbia e chega a pôr em dúvida um possível conceito de beleza estabelecido por uma geração. Tudo isso com o propósito de evidenciar as qualidades da Lésbia.
    O poema de Rimbaud apresenta semelhança com o de Catulo no que diz respeito à forma de estabelecer diferença de padrão de beleza, mas desta vez, demonstrando o paradoxo entre a beleza da deusa Vênus em contraste com a beleza da prostituta saindo de uma banheira. A forma utilizada para tal é a subversão da imagem do ideal de beleza que o autor possui. Para exaltar a beleza de Vênus ele mostra uma feiura que pertenceria a ela própria, caso fosse uma prostituta, prevalecendo, no entanto a estética da intensidade, escancarada nos adjetivos utilizados de forma enfática para colocar em destaque o inverso do estereótipo, são e perfeito.

    Francisco Paulo Ribeiro de Sousa.

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